sábado, 7 de março de 2009

NOTAS DAS AUTORAS

Essa parte não remete aos capítulos do livro e as histórias que serão aqui contadas servem apenas para registrar as grandes aventuras e experiências que a elaboração desse trabalho nos proporcionou. Inicialmente, nosso objetivo era falar da história do bairro e esperamos ter conseguido nossa meta, mas há algo que descobrimos que merece uma atenção especial: as meninas, como são carinhosamente chamadas por nós.

A zona do meretrício, principalmente pela situação atual, não é o lugar ideal para três estudantes passarem algumas tardes e noites. Mas nós acreditávamos que para escrever, precisaríamos viver um pouco daquela realidade e nós o fizemos.

Embora a proposta do livro não fosse convidativa à algumas pessoas, seja pela preocupação ou por desacreditar em nosso sucesso nessa apuração jornalística, decidimos ir em frente. Mesmo que a desmotivação se revelasse em algumas conversas em busca de orientação, decidimos provar – para nós mesmas – que conseguiríamos.

Começamos nossas pesquisas no primeiro semestre desse ano e quando se fala em prostituição, dificilmente alguém quer colaborar ou enriquecer nossa história com o seu passado. Por mais que tivéssemos alegado discrição e preservação da imagem, muitos dos nossos possíveis entrevistados se negaram a falar por receio de terem seus nomes envolvidos em um assunto tão polêmico.

Foi o caso do Sr Ênio Bucke, que foi localizado pela nossa equipe em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Embora sua esposa, em inúmeras ligações, já nos tivesse informado que Ênio não falaria sobre o assunto, ele nos atendeu e se negou, disse que o sobrenome dele era diferente, que nunca esteve em Campinas, muito menos no Jardim Itatinga. Insistimos em vão.

A viagem marcada para o Rio de Janeiro para a entrevistarmos uma fonte tão importante foi desmarcada. Entretanto, todas as informações contidas nesse livro sobre o caso são baseadas no processo do crime que desarquivamos, portanto, verídicas e documentadas.

Há ainda histórias engraçadas como localizar o médico que cuidava das prostitutas. Ele atendeu o telefone e depois de nos identificarmos, ele se questionou "e daí?" e desligou o telefone sem que pudéssemos falar nada. Ligamos novamente e uma pessoa da família nos informou que ele não estaria em condições de nos responder. Estava com problemas de saúde.

E por falar em problemas de saúde, tentamos, desde o primeiro semestre, contatar o "bon vivant" que adorava dormir na zona e após muitos outros compromissos, não pôde mais nos atender. Ele tem um problema de saúde cíclico e estava passando por algumas dificuldades. Ligávamos para ele, que ao atender, dizia que ele não estava.

Nada foi documentado do bairro. Não há informações na Prefeitura, Biblioteca da Câmara Municipal, em livros ou nos arquivos do Largo do Café, cuja falta de organização não nos permitiu encontrar. Deficiente de embasamento teórico, fomos às entrevistas em busca de informações que pudessem nos ser úteis, além de novas sugestões de fontes.

Enfim, depois desse processo de pesquisa documental e bibliográfica, buscamos auxílio para a realização das pesquisas participante e de campo. Agendamos uma visita ao Centro de Promoção da Mulher Marginalizada, dirigido pelas freiras, Maria de Lourdes Vicari e Ana Maria Rocha Bastos. Este centro dá assistência às prostitutas do bairro e é também uma creche que se responsabiliza pelo atendimento aos filhos dessas mulheres e demais crianças da região.

Ao visitá-las, estávamos certas de que poderiam nos ajudar. Depois de explicarmos o objetivo do livro e pedir ajuda, elas ficaram nos questionando sobre o que ganhariam com tal trabalho. Para elas, nós estávamos sendo egoístas, pedindo ajuda e não dando nada em troca. Nós escreveríamos o livro, para conseguir nossos diplomas e elas nada ganhariam com isso.
Nosso objetivo nunca foi fazer alguém ganhar ou perder com este livro, só queríamos documentar a história do bairro que faz parte da história de Campinas e reunir o maior número de informações sobre o Jardim Itatinga.

Propusemo-nos a conseguir alimentos para a creche e elas prontamente responderam "Crianças todos ajudam, todos têm dó. E nós? O que vocês podem nos dar?". Depois de tentar negociar, ela nos pediu que visitássemos as meninas do Itatinga um dia por semana, de segunda à sexta-feira, durante o horário comercial. Era impossível, porque todas do grupo trabalham e dependem disso.

Ela sugeriu que déssemos seqüência e que garantíssemos muitas edições do Jornal Cinta Liga, um projeto iniciado pelo Professor Bruno Fuser, da Puc de Campinas. Não pudemos nos comprometer a fazê-lo porque, além de ter que arcar com os custos sem saber como, teríamos que fazer entrevistas e nos dedicar ao jornal e não tínhamos disponibilidade devido ao Projeto Experimental.

Jamais nos comprometeríamos a assinar matérias e a fazer um jornal que não teríamos condições ou ainda, não pretendemos, por nossa ética e postura pessoais, pagar pelas informações. Ignoramos os pedidos das representantes do CEPROMM e procuramos informações sobre a entidade através de documentos.

Para nossas pesquisas de campo procuramos outras formas de chegar ao bairro, de maneira a não causar desconforto para as moradoras. Começamos pelo Bar da Dalva, que nos abriu as portas de sua casa pela primeira vez no Itatinga. Conversou, contou, nos mostrou o lugar, disse como funcionava. Além de dona do bar, ela é cafetina e já foi prostituta em sua vida. Suas histórias enriqueceram nossas pesquisas e nos motivaram a voltar outras vezes.

Voltamos uma outra vez. Era uma tarde de sábado. Sentamos, as três, na mesa do Bar da Dalva e ficamos esperando por ela, que tinha ido ao centro. A curiosidade atraía os homens do bairro. Não éramos prostitutas, aparentemente. Olhavam-nos com ares de quem se pergunta "o que essas meninas estão fazendo num bar em pleno Itatinga".

Ficamos quietas e comportadas esperando, esperando, esperando e depois de ter visto uma movimentação sem igual naquele bar, carros passando insistentemente, homens e mulheres nos olhando e com receio de perguntar ou se aproximar, enfim, depois de quase duas horas esperando, resolvemos ir.

Mesmo porquê, o fundo musical não nos agradava muito. Característico do bairro, como cantoras do estilo pop no auge da mídia, ou o pagode, ou ainda músicas-tema de antigas novelas românticas. Quem não se lembra de " eu não quero tocar em você, oh baby, e fazer seu jogo vai me deixar louco"...

Então, você conhece a amiga da prima de não sei quem, que está sempre lá e que pode te levar a algumas casas. E ela levou uma de nós para conhecer a casa e passar uma tarde com as meninas, conversando, conhecendo e se divertindo. Porque elas são muito animadas e divertidas, têm um ótimo astral.

Paralelo a isso, a outra do grupo andava pelos hotéis do centro da cidade de Campinas, próximo à Estação Ferroviária, tentando entender o que aquelas mulheres estavam fazendo lá, ao invés de estarem no Itatinga e ouvindo duras realidades de quem não tem condição de vida e que vai ficando nessa vida por falta de opção.

Também durante esta pesquisa de campo, fomos ao Bosque de Campinas, no centro, onde se concentram prostitutas, travestis e garotos de programa. Conversamos com uns poucos, marcamos outros dias, outras entrevistas. Tentávamos, nas noites de inverno, andando, sozinhas por Campinas, conversar e nos aproximar das prostitutas.

Elas ficam em becos, em ruas escuras e a sorte que nos protegia até então, talvez não nos fosse tão generosa. Decidimos tentar outras vezes, durante o dia. Mas conhecemos de perto a realidade daquelas mulheres. Lugares sujos, situação incerta, convites de desconhecidos, promoção de sexo para atrair clientes como a conhecida ‘chupetinha por R$1,99’, referindo-se ao sexo oral.

E assim continuamos nosso trabalho. As idas ao Itatinga foram se tornando mais freqüentes. Agendamos uma visita às boates Galo de Ouro e Devaneios. A proposta era ficarmos até à meia-noite na primeira e até umas três e meia da madrugada na outra. Fomos bem recebidas, conhecemos a luxuosa Galo de Ouro, mas não tinha movimento em plena noite de sábado. Aqueles estacionamentos que saudosamente já estiveram lotados, não tinham nenhum carro.

Fomos então para a Devaneios, mais simples que a Galo de Ouro, mas com lindas e simpáticas meninas. Fomos bem recebidas e nossas entrevistas foram bem proveitosas. Combinamos de voltar, na terça-feira, quando o movimento deveria estar maior. Naquele dia, muitas das meninas estavam em Barretos, para a famosa e tradicional Festa de Rodeio.

Voltamos na terça e presenciamos uma triste situação. Um grupo de amigos chegou, escolheu as meninas e um deles, muito carente, nos comprovou o quanto homem precisa de carinho. Ele beijava as mãos e a abraçava e a acariciava e, em seu mais legítimo romance, a levou para o quarto. Pegou-a no colo, como nos filmes.

Ela estava passando mal e não pôde atendê-lo. As outras meninas da casa se uniram para ajudá-lo, para despertar o interesse dele por outra, mas ele estava preocupado e queria aquela menina, até que conseguiu. O acordo com o gerente da casa permitiu que entrassem no quarto, ela – que estava embriagada - ele e outra menina da casa.

Numa sexta-feira então, fomos passar uma noite no Itatinga, para viver aquela situação, para nos aproximarmos delas e entendermos melhor esse mundo que construíram para elas. Chegando numa outra casa, não tão famosa, nem luxuosa, sentamos ali naquelas cadeiras, como elas ficam, vendo o movimento e ‘à mostra nas vitrines’.

As abordagens e a insinuação das meninas eram as mais engraçadas. Frases como "vem me chupar ou demorou?" " a noite é uma criança, vamos fazer dela um bebê?", entre outras, tornaram as noites divertidas, mas é preciso atentar-se à tristeza que isso deve lhes causar.
Uma dessas meninas estava doente, já tinha ido ao hospital e estava com uma gripe muito forte e, mesmo com frio de agosto, ela estava de minissaia e top, de corpo à mostra. Aliás, isso todas elas. Podem até começar a noite com muita roupa, mas logo vão tirando e nas insinuações e danças vão ficando nuas.

É comum encontrarmos no Itatinga mulheres com seios à mostra, só de biquini, só de lingerie e salto alto... vale tudo nesta conquista aos clientes. Uma até nos disse "ai, está frio mas tem que fingir que não, né?"

Naquela calçada, ficamos sentadas como elas e quando chamadas ou abordadas, fazíamos que esperávamos por um cliente. Não podíamos dizer que era trabalho de faculdade ou que éramos jornalistas porque os clientes se afastariam e difamaríamos a casa. Não era esse o nosso objetivo e acabamos tolerando os inconvenientes homens dali.

O preconceito está mesmo nas pessoas. Todos nos perguntam "e se encontrarem vocês lá?" e nós respondíamos que as pessoas que são próximas e que deveriam saber, sabiam. Isso não nos envergonha. O olhar discriminante das pessoas quando nos viam sair da zona, ou dos hotéis do centro, ou dos bares poderia até nos incomodar, mas nossa preocupação maior era ver o que essa vivência nos proporcionaria.

Numa manhã de domingo, folga delas e quando imaginávamos que o bairro ainda dormia, fomos procurar por residências familiares para entender a convivência entre eles. Deparamo-nos com uma situação muito constrangedora. Perguntamos a uma mulher que varria uma casa onde encontraríamos por residências familiares. Indignada, ela nos respondeu que ali era uma residência familiar mas que se negava a falar. Bateu fortemente o portão e saiu.

Continuamos andando pelo bairro e recebemos um curioso convite de um homem que passeava pelo bairro de carro:
Estão perdidas? Vamos fazer amor?
Em nossa caminhada ainda presenciamos vestígios da boa noitada anterior. Um homem, embriagado, dormia tranqüilamente na calçada de um bar, com os membros expostos.
Deixamos as imagens fotográficas para serem registradas após o término da pesquisa de campo. Temíamos que durante o trabalho, isso pudesse nos privar de novos encontros no bairro.
Tentamos, durante a noite, fazer fotos escondidas. Não foram fotos elaboradas e os anseios causados pela situação de risco não resultaram em boas imagens. Ao ver os flashes das máquinas, elas se viravam, se escondiam e nós continuávamos tentando.

Numa outra oportunidade, voltamos com uma filmadora num carro com insulfilm para, com uma filmadora com infra-vermelho, transformar as imagens em fotografias. Muito produtivo e sem transtornos.

Após essas aventuras noturnas, voltamos ao bairro durante o dia, com nossas máquinas numa visita pré-agendada para fotografar as meninas. Fomos recebidas sem muito entusiasmo e uma pronta proibição da cafetina e das meninas, para que as fotos fossem produzidas.
Seguimos pelo bairro insistentemente em busca de uma profissional disposta a expor sua beleza às lentes das nossas máquinas. Algumas aceitaram, outras não. Algumas de corpos mais trabalhados e definidos, se negaram pois seriam facilmente reconhecidas e temiam. Outras ainda nos renderam boas fotos com sua já característica beleza natural.

Fomos então, fotografar as movimentadas ruas do bairro. Assustados, alguns freqüentadores em carros de empresa, tentavam se esconder e pediam que não os fotografássemos. Esse mesmo homem foi quem nos alertou de que outros estavam atrás de nós – não sabemos se era verdade, mas não esperamos para ver.

Não queremos deixar aqui uma mensagem para que sintam pena delas. Elas não são coitadas, nem querem mudar de vida. Uns podem achar que é por sem-vergonhice, mas acreditem: elas dão muito valor à relação familiar, à situação de vida que devem proporcionar aos seus filhos, à sua independência e a sua oportunidade de viver a cada dia.
Querem saber? Isso foi um exemplo de vida.


CONVERSAS NAS CALÇADAS


A cada conversa informal nas ruas do Itatinga, é possível conhecer as mais diferentes realidades e histórias das mulheres que hoje sustentam a fama do bairro. Confidenciaram-nos os seus casos mais intrigantes.

A mineirinha sorridente e descontraída, deixa a família e um filho que nem imaginam o que vem fazer a cada 15 dias em Campinas. Divorciada há pouco tempo, diz ter descoberto "uma mina entre as pernas" e que se soubesse antes, já estaria rica.

Outra, casada, diz ao marido que é enfermeira. Explica -se assim, os diferentes horários que trabalha. Seu marido? Nem desconfia. Ao ser convidada para uma foto, nega de imediato. Entre gargalhadas, diz que seu marido conhece aquela bunda em qualquer posição.

A amiga diz que também é casada e que seu maior cliente é o seu vizinho e todos no bairro já conhecem a fama do seu marido, menos ele. Ironicamente, diz que também não pode ser fotografada, pois seu pai é um leitor assíduo de jornais.

Outra, já se aproveita e diz que quer ser fotografada pois quer provar que as mulheres de lá não são ‘barangas’ como dizem por aí.

Numa certa noite, uma prostituta pensou que uniria o útil ao agradável. Viu entrar na casa um homem moreno, alto, bonito, de cavanhaque e aliança no dedo esquerdo, motivo de muita segurança na concepção delas. Ao chegar no quarto, se depara com aquele homem de lingerie, pedindo que ela o ‘console’.

Contaram ainda uma triste história. Para ajudar nas despesas da casa, o marido de uma delas a leva ao Itatinga em horário comercial e volta no fim do dia para buscá-la.

Ao falar do convívio no bairro e da criação dos filhos num cenário de prostituição e exposição do corpo, o morador nos disse que quando seu filho pergunta porque as mulheres de lá estão nuas, ele responde que é pelo calor. A pergunta foi feita em uma noite fria de inverno...

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mais do que contar a história do Jardim Itatinga e de sua realidade, há algo, neste livro, que impressionou mais suas autoras, que teve maior impacto em suas vidas e as conduziu a uma reflexão. Diferente da prostituição encontrada em outros lugares das grandes cidades, o Itatinga assemelha-se a uma grande família.

São centenas de mulheres que se uniram para lutar por algo em comum: a sobrevivência na prostituição. Impossível seria traçar um perfil dessas mulheres. Elas vêm e vão para qualquer lugar. Umas têm, outras não, mas todas carregam uma esperança, um desejo: o de ter, fazer ou ser parte de uma família.

Ali, existem amizade, protecionismo, relações próximas, intimidades e um carinho muito evidente entre as meninas. Por outro lado, em alguns lugares esta relação não parece ser tão amigável. Afinal, há um jogo de interesses, a busca pelo dinheiro e a lucratividade que muitas vezes provoca rupturas, algumas violentas.

Os confrontos e conflitos vivenciados, entre eles o fato de as famílias não aceitarem sua condição, a mentira que tal situação gera, a distância de seus filhos, a humilhação e sofrimentos tão comumente vividos por aquelas meninas dificilmente são evidenciados ou demonstrados. Elas parecem viver alheias em um universo distante dos problemas, fator que tem atraído os homens nos últimos 40 anos.

As mulheres do Itatinga são como as demais mulheres. Porém, vão além de simples prostitutas. Elas se dedicam ao trabalho, não têm preconceitos – ou, pelo menos, não os tornam perceptíveis - não há doença ou atestado médico que justifique um dia sem trabalho. Não há tristeza que seja mais importante do que ‘bater o ponto’.

Nessa relação, homens procuram pelo sexo, por uma mulher bem disposta, sem pudores, sem problemas, sem assuntos de casa, filhos ou contas a pagar, procuram pelo carinho, pela conversa, pela superação do ego e pela certeza de sua virilidade. Diferentemente do lar, do relacionamento com suas esposas, eles encontram a mulher sempre disposta ao prazer e distante dos problemas do cotidiano. É por isso que sempre voltam.

As mulheres? Ah, essas mulheres têm sonhos, têm fantasias sexuais, têm dentro de si a vontade de viver um grande amor, não daqueles que as distancie de sua independência. Ninguém ali quer ser submissa ou lavar cuecas. Elas querem mais. Elas são donas de si e do dinheiro que ganham e, como ninguém, dão valor a isso.

Mas há um lado obscuro do Jardim Itatinga. Quem passa pelas suas ruas não o vê, mas é uma realidade vivida dentro dos quartos. Trata-se da incerteza de quem pagará pelo programa e do que as espera, agressões verbais e físicas, o sexo extravasado e sem limites, a obrigação superando a vontade e o prazer.

O que está nas ruas e nas casas é a sensualidade, o salto alto – digno das maiores fantasias masculinas – sob as calçadas e o asfalto, as lingeries, o corpo, às vezes, bem cuidado, cabelos bem tratados, roupas curtas e provocantes, enfim, são perfis iguais aos de muitas mulheres casadas. Mas a experiência, as tantas maneiras de prender um homem na cama, indiscutivelmente, este poder elas detêm.

Mas então é isso: a falta de compromisso que os atrai. Não há flores no dia seguinte. Não há envolvimento, ligação para dizer que teve uma noite maravilhosa, ou seja, tudo o que qualquer mulher gostaria. Mas quem disse que elas são diferentes? Há uma essência feminina e romântica que as fazem tão carentes como as outras.

Escrever a história de um bairro criado para confinar prostitutas – leia-se isolá-las de um convívio com a sociedade – não foi simples, mas entende-se esse livro como um documento de referência histórica de um lugar em Campinas, de um comportamento social, da influente ação conjunta da sociedade, igreja, imprensa, política e policial em busca de algo.

Atualmente, o processo reversivo mostra que esse tipo de ação, prioritariamente hipócrita e preconceituosa, não tem tanta eficácia a longo prazo e que, nas atuais circunstâncias e condições, a sociedade que as confinou está urbanizando a área, atraída pelo baixo custo dos terrenos e expandindo o bairro, numa audaciosa convivência entre bordéis e casas de famílias.
O confinamento não foi efetivo, foi apenas uma consolidação dos anseios preconceituosos de uma sociedade apoiada por forte vertente política. Mas não há meios de distanciar as classes menos favorecidas ou com comportamentos considerados ‘desviantes’. São problemas sociais que merecem atenção, não mais preconceitos.

Não há como incentivar o fim ou a continuidade da prostituição, não há como defini-la nem julgá-la como certa ou errada. Há que se atentar de que é uma realidade, existente em quase todas as sociedades e que é sustentada pelas mesmas pessoas que a excluem.
De que forma poderia ser um confinamento eficiente no caso de uma cidade como Campinas, em constante ascensão tecnológica e industrial, que atrai centenas de pessoas a cada ano em busca de oportunidades profissionais?

Entre ganhar um salário mínimo de duzentos e quarenta reais como empregada doméstica e receber, em média, dois mil por mês, há quem opte pela segunda opção na dura tentativa de sustentar suas famílias: as prostitutas.

O legado da prostituição é isso: dias vividos intensamente, anos passando mais depressa, marcas do tempo explícitas em seus rostos, amargura de uma infelicidade e insucesso constantes, uma vida profissional curta e dependente da aparência física e uma incerteza do que será do amanhã.
Esta é a história do Jardim Itatinga desde seu início. E então, você acredita que isso seja mesmo um mal necessário?

CAPÍTULO 7: UM MUNDO ÀS ESCONDIDAS

Repleto de misticismo, cada rua do bairro Jardim Itatinga revela diferentes histórias de vida, duras realidades, desencantos e noites mal dormidas. Os olhares de cada uma das moradoras refletem uma vida sofrida, cheia de amarguras, decepções, busca por mudanças ou recompensas pela vida que levam. Mas ao mesmo tempo exibem beleza, sensualidade, simpatia e, mais que tudo, uma intensa sexualidade.

Tanto as pessoas que nele residem, como o bairro em si, formam um mundo à parte. Nenhuma das mulheres que moram no bairro pretende ficar para sempre nas condições em que vivem. Sonham em melhorar de vida e buscar novos horizontes.

Mas nem sempre sair é tão fácil como chegar. Por isso continuam ali e, quando saem, acabam procurando outro local, para mais uma vez, vender seus corpos. Admitem ainda que as marcas da vida noturna estarão sempre na lembrança daquelas que por lá passarem.

O Jardim Itatinga, na atualidade, reflete a má distribuição de renda e todos os problemas enfrentados pela população carente das médias e grandes cidades brasileiras, como o caso de Campinas, que atualmente suporta mais de um milhão de habitantes, segundo o censo demográfico realizado pela Prefeitura da cidade.

Ponto de referência para viajantes, por estar localizado às margens da rodovia Santos Dumont, que interliga o eixo Anhangüera-Bandeirantes aos municípios de Indaiatuba, Salto, Itu e Sorocaba e, principalmente, a São Paulo, o Itatinga é uma atração.

Todos que transitam pela rodovia debruçam-se às janelas dos veículos para observar o famoso e lendário Jardim Itatinga e suas tão comentadas moradoras. A curiosidade sobre o bairro das putas não é somente masculina. Muitas mulheres, quando surge uma oportunidade, passam por suas ruas para observar as casas e o comportamento de mulheres e de clientes.

Segundo dados do Centro de Saúde Jardim Itatinga, o bairro possui em média 2000 prostitutas, sejam moradoras ou freqüentadoras constantes. O número não corresponde à quantidade exata de meninas nas casas, devido à rotatividade e às possibilidades de algumas não utilizarem os serviços do posto local.

O bairro conta com média de 200 casas de prostituição, de pequeno, médio e grande portes. Mas a decadência faz com que as mais famosas delas estejam freqüentemente vazias, com horário de funcionamento reduzido e com um número baixo de meninas em relação ao período de glamour. Hoje, a Galo de Ouro, uma das mais famosas boates de Campinas, não consegue manter mais que sete mulheres, número insignificante para uma casa que já chegou a contar com oitenta em uma única noite.

A maioria das mulheres opta por casas de médio e pequeno porte. Segundo elas, o número de programas por noite é bem maior do que nas grandes casas, o que compensa os valores mais baixos cobrados por cada programa. Claudia, proprietária de uma casa de pequeno porte, onde também se prostitui, relata que o segredo para um bom movimento não está no tamanho da casa, mas sim na simpatia e beleza das meninas.

A quantidade de ruas de prostituição continua a mesma. Segundo Dinah, o que muito decaiu foi a quantidade de mulheres. "Hoje não tem nem a metade do que tinha antes", argumenta ela.
Diferente do que se observava no período em que foi formado, o bairro já não é mais conhecido pelo glamour das casas refinadas e dos freqüentadores ilustres. Durante o dia, as mulheres permanecem em frente às casas, o movimento e trânsito de carros designam uma típica zona de prostituição.

É comum encontrar pelas ruas vendedores autônomos com as mais variadas mercadorias. O comércio informal é abrangente e vende desde lingerie até condimentos culinários.
As prostitutas vêem no Itatinga, um refúgio onde podem exercer, longe dos olhos de familiares e das reprovações sociais, aquilo que muitas definem como profissão: a prostituição.

Além delas, lá vivem também muitos travestis e homossexuais. Cristiane, 30 anos, ‘sapatão’ como prefere ser chamada, sente-se livre para andar pelo bairro sem medo da discriminação. Moradora do bairro há sete anos, já conseguiu o apoio da família em relação a sua escolha. "No começo não foi muito fácil eles me aceitarem aqui, mas depois eles viram que aqui a gente pode ter mais liberdade. Aqui é um mundinho da gente, por isso que a maioria vem, travestis, 'sapatão', prostitutas. Porque aqui a gente fica a vontade, a gente faz o que quer", argumenta Cristiane.

Jardim Telesp, Parque São Paulo e Jardim Maria Rosa são bairros formados nas proximidades do Jardim Itatinga. O número de moradores nessa região vem aumentando gradativamente por uma população de baixa renda.

A infraestrutura do bairro também nada se diferencia dos demais. Há recursos básicos, ainda que deficientes, em todos os serviços públicos. Coleta de lixo, água, luz, telefone e ruas asfaltadas. O bairro ainda conta com um posto de saúde, um centro de atendimento às mulheres marginalizadas e uma creche.

Izalene Tiene, atual prefeita da cidade de Campinas, informou que também houve um investimento recente para a manutenção geral do bairro, com operação tapa-buraco, na limpeza do bairro e no cuidado com os equipamentos públicos instalados no local.

Os moradores contam com toda a frota de ônibus que transita na rodovia Santos Dumont e com todas as linhas que atendem aos bairros mais distantes, como os Dic´s e Ouro Verde, que chegam a passar pela rua Eldorado, paralela à Santos Dumont, a qual já faz parte do bairro.
Nessa mesma rua, a creche Bento Quirino - Unidade II, atende a 110 crianças, moradoras do bairro e da região, com idades entre dois e onze anos. Essa organização não-governamental mantida pela Sociedade Feminina de Assistência à Infância, objetiva oferecer às crianças o apoio social garantido através do Instituto da criança e do adolescente.

7.1 Política da boa vizinhança

Os moradores do Jardim Itatinga não conseguem abster-se do estigma imputado pelo bairro. Atraídas pela especulação imobiliária, as famílias não representam mais do que 20% da população local. E, curiosamente, a maioria dessas residências familiares tem alguma ligação com a prostituição, entre eles, arrendatários e pessoas que exercem alguma função nas casas e que indiretamente sobrevivem da zona.

As casas de família são facilmente percebidas no bairro. Muros altos e com uma, já tradicional, placa indicando ser residência familiar. Além disso, as moradoras preservam a discrição ao sair na rua. A convivência é inevitável, mas ainda há uma tentativa de distância das prostitutas.
Por outro lado, muitas prostitutas criam seus filhos no bairro e, sem nenhuma indignação, os fazem presenciar aquela realidade. A dona de casa Maria Margarida afirma já ter visto crianças na esquina de sua casa e não se conforma com essa triste convivência. Rostinhos inocentes se misturando aos olhares e gestos insinuantes das mulheres "Um dia, havia uma menina sentada na calçada brincando com uma boneca. Homens paravam para mexer com ela. Eu não tinha telefone, senão chamaria a polícia", lamenta.

A moradora defende um novo confinamento, a designação de outra área, mais afastada, para abrigar a prostituição em Campinas. "Se elas saíssem daqui, ia valorizar muito minha casa. Eu acho que poderiam ser prostitutas, mas em um outro lugar, tipo de uma chácara, em uma ilha, sei lá", afirma.

Pais que possuem residências familiares procuram manter a família o mais afastada possível das casas de prostituição. Aurino da Silva, morador há 31 anos do bairro, motorista do sistema de transporte alternativo de Campinas e proprietário de casas arrendadas, convive com a esposa e dois filhos no bairro. Ele criou uma saída alternativa de sua casa na rua oposta, a qual não pertence à malha do bairro. Dessa forma, seus filhos, de cinco e sete anos, não cruzam o mesmo espaço das prostitutas.

"Estou fazendo acompanhamento psicológico com meus filhos para me preparar para educá-los. Sinto-me seguro aqui, não trocaria o Itatinga por nenhuma casa em bairro elegante como o Cambuí. Aqui é seguro porque tem sempre policiais transitando", afirma Aurino.
Com todos esses contrastes, o Jardim Itatinga sobrevive e ainda mantém um certo encantamento que atrai mulheres de regiões distantes, cheias de esperanças, sonhos, expectativas de encontrar no famoso local, espaço e sobrevivência.


7. 2 Mulheres da Vida

É fácil reconhecer entre as moradoras, meninas com descendência mineira, baiana, paranaense, cearense, entre outras. A temporada em cada localidade também é bastante remota, o que faz do Jardim Itatinga um bairro de muita rotatividade e variedade de meninas. A maioria delas não fica mais de um ano no mesmo local.

Há mulheres de todas as idades, casadas, solteiras, viúvas, com ou sem filhos. Não há restrições quanto à cor ou raça, são as ‘meninas do Brasil’ que procuram através da venda de seus corpos, conquistar espaço na sociedade de maneira a se sentir parte dela.
A baixa formação escolar, o desemprego, a desestruturação familiar e dificuldades financeiras, contribuem para que elas tentem, de uma maneira mais acessível à sua realidade - mas não mais fácil - conquistar seus objetivos.

O capitalismo e o modismo estimulam a necessidade de conseguir dinheiro. A ilusória facilidade oferecida pela prostituição acalenta outras maneiras de conduzir a esse sucesso. A busca rápida e desprovida de valores incentiva esse mundo de agitação, mas também de incertezas sobre o futuro, um mundo às escondidas.

O bairro conta com o Centro de Saúde Jardim Itatinga, mantido pela Prefeitura e que vem colaborando com a saúde e prevenção das moradoras. Mais do que o atendimento médico, a enfermeira Reonilda Moreira, afirma que as mulheres procuram pelo centro para desabafar as tristezas e maus tratos sofridos por clientes, pela família, namorados, enfim, por todos aqueles que continuam colocando-as na posição de excluídas.

Um dos maiores problemas na região é a incidência de casos de AIDS em relação aos demais bairros de Campinas, o que colaborou para que fosse estigmatizado pela sociedade, provocando ainda mais o preconceito em relação àqueles que residem nas proximidades.

Segundo o enfermeiro Glauco Ceranto, Coordenador da Unidade, a área de abrangência do Centro de Saúde atende, aproximadamente, 6000 pessoas, sendo que quase 3000 são prostitutas. As pessoas atendidas pelo centro são, em sua maioria, dependentes do Sistema Único de Saúde, o SUS.

Outro problema encontrado pela unidade, segundo o coordenador, é o excesso de usuários de drogas, seguido pelo homossexualismo masculino, feminino e, principalmente, a prostituição feminina, o maior agravante da região.

Reonilda acrescenta que, apesar dos recursos cedidos pela Prefeitura, o Centro de Saúde é deficiente em diversos setores. "Há semanas que nosso estoque de camisinhas encontra-se defasado, não temos nenhum médico aqui. Ontem foi o último dia do médico que vinha à unidade. O medo da violência e a falta de estrutura para lidar com os casos que chegam aqui fazem com que nenhum médico fique durante muito tempo", lamenta.

Segundo ela, faltam equipamentos, salas adequadas para o atendimento e estrutura para realizar, na própria unidade, exames mais específicos e de maior urgência que chegam até o local.
Uma das principais iniciativas do Centro de Saúde é o Projeto Condom que prevê, na região, a presença de uma população vulnerável às doenças sexualmente transmissíveis e entrega 30 preservativos por semana. O programa dá preferência ao atendimento às prostitutas, realizando exames preventivos a cada seis meses e visitando as residências das mulheres para instruí-las e atender às demais necessidades.

Apesar das limitações relatadas, há uma maior conscientização por parte das prostitutas, sobre os problemas que podem acarretar caso não haja a prevenção de doenças.
Ainda são registrados casos de mulheres grávidas de clientes ou namorados, de aborto e de doenças sexualmente transmissíveis, entretanto, segundo a Secretaria do Planejamento da Prefeitura de Campinas, o número de casos vem diminuindo nos últimos anos de forma significativa.

Muitos clientes ainda oferecem mais dinheiro às meninas que aceitarem ‘fazer programa’ sem o uso do preservativo. Outro fator de risco é o início de um relacionamento fora da prostituição, quando elas acreditam não precisar se prevenir com o namorado.

A proprietária Cláudia, aconselha as meninas a continuar usando o preservativo, mesmo com o parceiro fora da prostituição, e vê nesses relacionamentos um obstáculo para o bom andamento da casa. "O grande problema é quando as meninas se apaixonam, elas acabam cedendo e fazem sexo sem camisinha, é aí que mora o perigo de contrair uma doença. Eu que fiz curso de enfermagem e sei bem os riscos, procuro orientar as meninas que trabalham na minha casa"
Os travestis, também preocupados com a saúde, dizem se prevenir. Miuxa, dono de uma casa onde a maioria é travesti, diz manter controle sobre os exames realizados por todas as pessoas que residem em sua casa e afirma que eles já estão conscientes, embora não possa responder pelo que acontece dentro do quarto.

Além das doenças, a equipe de saúde procura encaminhar casos que fogem às possibilidades de atendimento local, para centros especializados. Exemplos dessa iniciativa são os casos de violência contra mulheres, cometidos por clientes. Esses encaminhamentos são feitos com discrição e cabe às mulheres a decisão de procurar auxílio em delegacias.
Reonilda afirma que não há como estimar os casos de violência contra a mulher. A maioria deles é relatado em confidências pessoais à enfermeira e as denúncias não saem do consultório médico. O medo, segundo ela, é o principal motivo do sigilo das vítimas.

7.3 Mãe de família e mulher da zona


Essa é história de Wanda, 27 anos e prostituta há três. Originária de família humilde, saiu de Belém do Pará e chegou a Campinas convidada pela sua irmã, que já trabalhava no Jardim Itatinga. Sem ao menos saber o que era uma zona de prostituição, Wanda veio em busca de melhor condição de vida.

Grávida, ela ficou sem trabalhar durante a gestação e, quando se viu sem meios para sustentar a filha, começou a se prostituir. Wanda vive no Itatinga. Possui uma casa em uma favela da periferia, onde divide o pequeno espaço com sua filha e um travesti, que também trabalha na zona.

Sem expectativas de melhor condição fora do Itatinga, não espera deixar a prostituição a curto prazo, pois é dela que vem o seu sustento. Divide-se entre casas no Itatinga e a prostituição nas ruas do centro. Fatura por programa cerca de trinta reais e faz, em média, seis programas por dia.

Recentemente envolveu-se com um cliente que conhecera no bairro. Ele se separou da esposa para que pudessem viver o relacionamento. Ele sonhava em tirá-la da prostituição e dar a ela uma vida melhor. No entanto, Wanda não via possibilidade de conseguir um emprego – tão bem remunerado quanto a prostituição – e já não imaginava um relacionamento que viesse lhe tirar sua independência financeira.

Decidiu-se, mesmo assim, acatar o ciúme de seu namorado e foi em busca de uma oportunidade de trabalho. Sem sucesso, optou por continuar na prostituição e a relação se tornou insustentável. Wanda está sozinha.

A cada carro que pára em frente à casa, ela sente a angústia e a incerteza de se envolver com homens sem saber quem são. Teme não saber o que querem. Teme, ainda, não voltar para cuidar da filha.

A caminho de casa, observa o olhar descriminado dos vizinhos que especulam sua origem. Acostumada, segue para seu refúgio, a casa com ares de lar, sem nada que remeta à sua vida na zona. A filha vai, aos poucos, situando-se no contexto da prostituição. Sem ter com quem deixá-la, Wanda a leva para o Itatinga.

7.4 Faces Ocultas

A maioria dos freqüentadores é assalariado, caminhoneiros e "boys" - forma em que as próprias mulheres definem jovens que passam pelas ruas do bairro em fins de semana, apenas para observar o movimento e as mulheres. São homens de todas as idades transitando pela região.
A mudança do perfil dos freqüentadores é explicada pelas mais variadas formas de prostituição presentes na cidade, e também pelo medo. O receio de serem vistos na zona e com os números de casos de violência registrados em jornais, intimida esse tipo de cliente.

No entanto, esse público não fica sem opções na cidade. O processo reversivo ao confinamento revela novas e mais discretas maneiras de encontrar prostitutas. Muitas boates exibem outdoors pela cidade com propaganda sobre shows de stripers em casas refinadas. Casas de massagens e anúncios em jornais, são maneiras de encontrar belas acompanhantes sem se expor em um bairro de prostituição.

Os clientes são a parte mais anônima e fechada da prostituição. Enquanto as prostitutas e travestis se expõem em frente às casas e nas ruas, a maioria dos clientes se protege no interior dos carros. Passam em baixa velocidade, olham, sondam as opções à disposição, continuam a rondar, até que decidam se aproximar do alvo em vista e negociar um programa.

A maioria se nega a falar e acelera quando é solicitada a parar para uma entrevista. São criaturas que têm rosto, mas não têm voz. São vistos, mas preferem não falar. O que se sabe sobre eles é dito pelas prostitutas e travestis, que seguem em comum um código de ética: não revelam nomes.

As prostitutas e travestis são procurados por homens solteiros e casados. Muitos têm clientes fixos, com horário e dia marcados para os programas. Alguns ainda revelam histórias interessantes de casais que procuram pelas meninas para realizarem sonhos eróticos do marido ou da esposa.
Homens solitários e com problemas familiares estão entre os clientes mais rotineiros, principalmente aqueles que fazem programas fixos, ou seja, sempre com a mesma menina, criando uma relação de proximidade e confidência.
A maior incidência de visitas ao bairro acontece após o horário comercial. Os freqüentadores passam para tomar uma cerveja e observar o movimento, o que não os impede de também procurar as garotas para um programa. Para as meninas, as sextas-feiras são os melhores dias para ‘fazer programas’, principalmente em época de verão e em dias que recebem pagamentos nas empresas, especialmente por volta do dia 20 de cada mês, período em que são pagos os vales.

Com roupas curtas e muitas vezes sem elas, as meninas ficam em frente às casas no aguardo de que algum dos carros que ali transitam as convide a se aproximar.
Sob o olhar atento dos clientes, as meninas são como mercadorias observadas, avaliadas e até tocadas por aqueles que pretendem comprá-las. Sempre demonstrando sorrisos e simpatia, debruçam-se nas portas dos carros e trocam palavras, às vezes curtas, outras prolongadas, que parecem incentivar os clientes a pagar pelo programa.

A diferenciação das prostitutas é, por elas definida como completa e não-completa. A primeira aceita desde o beijo na boca até o sexo anal. Já a segunda, é aquela que se limita ao programa ‘papai-mamãe’, ou seja, o sexo vaginal.

Cada detalhe do programa é negociado, o que pode acrescentar ou reduzir o valor cobrado. O cliente, antes de entrar no quarto ou conduzir a menina até o local de sua escolha, já é ciente de quais os limites da companheira na cama, o que lhe impossibilita de pedir algo que ela não aceite fazer.

7.4 Contradições Sociais

A criação da pílula anticoncepcional na década de 50, que antecedeu o confinamento, contribuiu para a evolução do comportamento sexual da sociedade, com uma geração que trazia uma proposta libertária e dissociou o sexo da maternidade. Antes impensável sem o consentimento de uma união civil e religiosa, o sexo foi, em partes, se despindo de preconceitos e passou a ser consumado sem o menor receio do risco de uma gravidez indesejada, como explica a psicóloga-social, Carolina Zaparoli, em entrevista.

A pílula marcou essa mudança por pertencer apenas à mulher a decisão de usá-la. Esse acontecimento significou uma grande mudança no comportamento daquela geração e foi nesse mesmo período que a educação machista atingiu grandes proporções. Os pais começaram a levar seus filhos, de idades entre 14 e 15 anos, para a iniciação sexual com prostitutas.

As mulheres descobriram um sexo por prazer. A conscientização das prostitutas veio em seguida. Elas passaram a se ver como parte da sociedade e, por esse motivo, passíveis de respeito. Segundo a psicóloga, no século XXI haveria uma rebelião, caso surgisse uma tentativa de tirá-las do espaço conquistado.

A Igreja, por sua vez, vem mudando suas concepções sobre o assunto. Não apóia o confinamento de prostitutas em áreas isoladas da sociedade e procura, ao contrário disso, acolhê-las em um Centro Comunitário de Apoio à Mulher Marginalizada, o Cepromm, instituição fundada em 1976 no Jardim Itatinga, coordenada inicialmente pelo padre Haroldo Rahn.

A criação do centro embasou-se na tentativa de realizar trabalhos sociais de resgate da cidadania da mulher marginalizada e reinserção na sociedade. O Padre José Antonio Trasferetti, um dos precursores dos trabalhos realizados com prostitutas e travestis no bairro Jardim Itatinga, justifica uma possível colaboração da Igreja Católica como uma prática isolada. "Às vezes, algumas práticas eclesiais e pastorais conservadoras têm feito um discurso mais radical com relação a isso, até, colaborando com o confinamento e discriminação das prostitutas, mas isso não significa uma postura da Igreja como o todo"

Padre Trasferetti argumenta que se espelha nos ensinamentos da Bíblia para explicar a sua atitude de acolhimento às prostitutas, o que, segundo ele, não é uma aprovação à prática da venda do corpo, mas sim uma atitude de acolhimento às prostituídas."A Igreja não aprova a prática sexual enquanto mercado e perversão, ela entende que a sexualidade deve ser vivida dentro do contexto do matrimônio como expressão do amor".

Para o padre, a prostituição está diretamente ligada ao capitalismo brasileiro, que incentiva uma dupla moral. Ou seja, a sociedade tolera e até incentiva, através de produções mercantilistas e do próprio comportamento de homens que procuram viver sua sexualidade dessa maneira.
Mesmo não aprovando a prostituição, o padre aceita a presença de prostitutas em sua paróquia, porém, deixa claro que essa forma de vida não é correta, de acordo com os ensinamentos da igreja . Por esse motivo, acredita ser necessário um trabalho de conscientização, buscando alternativas para a mudança da realidade dessas pessoas.

Quanto às atitudes sociais em relação à presença de prostitutas na Igreja, alega que as reações são variadas. Alguns discriminam, outros acolhem, ou seja, são comportamentos oriundos de teologias diversificadas.

Existem, para ele, diferenças de comportamento de padres, pastores, leigos e de religiões. O mais importante é salientar que as prostitutas são discriminadas por todas as demais instituições, por isso, a Igreja não pode ser julgada pelo comportamento de alguns fiéis. "O ser humano em geral, é hipócrita, ao mesmo tempo em que condena, também se utiliza da prostituição. Trata-se da dupla moral que vem nos acompanhando há milênios. Por isso é importante ressaltar a figura de Jesus que amou, acolheu e perdoou todas as pessoas", ressalta o padre.

Travestis, habitualmente mais discriminados que as prostitutas pela sociedade, são os que encontram maior dificuldades de integração ou participação de atividades religiosas.
Denise, um travesti muito conhecido no bairro pelas suas iniciativas de acolhimento às prostitutas e travestis, quando desabrigados, com problemas de saúde ou simplesmente precisando conversar, participa de grupos de apoio às mulheres excluídas e por isso conquistou o respeito de muitas pessoas, inclusive por membros da Igreja Católica, o que antes não era possível imaginar, nem mesmo por ela.

Denise se orgulha em afirmar ser o único travesti militante da Igreja Católica em Campinas. Segue os princípios da Bíblia: dar direitos iguais a todos. Por esse motivo, já brigou muito com membros da igreja para assegurar seu espaço. "Eu fico com medo de que alguém crie uma nova religião que não seja baseada nos valores que a gente tem, cristãos. De criar novas igrejas, novas doutrinas. Seria importante que as religiões que já existem incorporassem os direitos iguais que todos nós temos e não os homens criassem uma nova religião" .

Alguns padres ficavam apreensivos em dar a hóstia no momento da comunhão, outros, simplesmente negavam. "Mas eu me impus, eu fui lá, porque eu faço questão dessa vida em comunidade, sou católica, praticante, eu vou à missa, tenho toda uma vida voltada para a questão da comunidade. Participo de cursos bíblicos, retiros, da vida da minha comunidade, da vida de minha paróquia" Além da Igreja Católica, outras religiões estão buscando o acolhimento das prostitutas.
Adaílton de Souza, pastor da Igreja Universal, afirma realizar visitas semanais ao bairro e, ainda, realiza, junto ao grupo de jovens, encontros na própria Igreja, com o objetivo de receber prostitutas e, desta forma, dar a elas a oportunidade de voltar ao convívio social.
Algumas pessoas continuam a alimentar visões machistas e conservadoras sobre as origens do confinamento e da prostituição. Procópio, proprietário do antigo Bar da Zona, afirma: "A prostituição é um ‘mal necessário’ que, apesar de menos procurada, ainda é uma maneira de evitar que moças de família sofram agressões sexuais em decorrência do instinto masculino que não controla seus desejos sexuais. A forma como as moças se vestem, atualmente, também provoca esse instinto incontrolável masculino." Para ele, se não houvesse prostitutas, haveria muito mais casos de estupros na cidade de Campinas.

Como definir um bairro que sobrevive da prostituição e todos, ou quase todos, sobrevivem disso. Donos de casas, arrendatários, prostitutas, cozinheiros, cabeleireiros, jardineiros e faxineiros. O comércio do sexo viabiliza várias profissões e cria no bairro uma nova sociedade, não tão isolada, mas de alguma forma diferenciada dos demais locais da cidade.
Esse é o Jardim Itatinga, repleto de mistérios, lendas e personagens que fizeram a sua existência marcante numa área isolada para prostitutas. Lá todos construíram, e ainda constroem, a sua história, seja ela de glamour, de destaque ou de lágrimas. Está desvendada a história do bairro mais famoso, não só de Campinas, mas de São Paulo, do Brasil, e quem sabe alguém já o tenha comentado em terras mais distantes.

CAPÍTULO 6: MEMÓRIAS DE UMA DAMA

Este capítulo relata a história de uma personagem que acompanhou a trajetória do Jardim Itatinga e que ainda faz parte dele. Dinah, aos 16 anos, saiu de casa em busca de sua independência. Ainda menina, cheia de sonhos e ideal, não sabia o que o mundo da prostituição reservava a ela. Sem estudos, por opção, deixou para trás pais e irmãos, uma família humilde com pudores, em busca de uma nova vida e ela a encontrou.

Iniciou-se na prostituição em Santos, no litoral paulista. Naquela cidade soube da existência do Jardim Itatinga, um bairro em formação em Campinas. A informação a atraiu. Dirigiu-se à cidade, atrás de dinheiro e fama que aquela vida supostamente ofereceria.
Quando chegou, encontrou as primeiras seis casas, que traziam em seus nomes, uma experiência de quem já atuara em outros pontos da cidade, como a Paraguaia, a Maria Lúcia e outras. Começou então, a trabalhar na casa da Maria Lúcia, onde conquistou a admiração de muitos homens por sua beleza natural e pela simpatia. "Era minha alegria de viver que irradiava", lembra Dinah.

Confessa hoje, que aquela alegria não era real. Havia nela tristeza e arrependimento pela escolha. Conhecida como Dama da Noite, aquela linda mulher se envolveu com os mais diferentes homens, ganhou dinheiro, fama e respeito entre as prostitutas do bairro.
Cabelos claros, cintura fina e o corpo seguindo o alinho daquela época, a Dama da Noite realmente encantava com seu sorriso. Atraía novos homens a cada dia e já era considerada uma das mais belas.

Viveu alguns romances, teve um namoro estável que lhe traz saudade. Aos 23 anos, envolveu-se com um rapaz de 16, segundo ela, seu único grande amor. Esse relacionamento se sustentava sob duras mentiras, que ela mesma contava.

Sem explicar muito, dizia que o dinheiro que recebia era de seu pai, supostamente um fazendeiro muito rico. Ela mentia sobre sua vida, sobre seu nome. Para seu amor ela era Deise, uma delicada mulher, filha de pais ricos e que esperava uma grande herança.

Decidiu, então, comprar um carro com o dinheiro da prostituição. Mas era preciso comprovar a identidade e seu namorado não poderia saber da grande farsa. Através da confiança e do relacionamento com a família do rapaz, comprou o carro em nome do pai dele.

Mais tarde, esse relacionamento chegaria ao fim. Não podendo mais se sustentar sobre mentiras e temendo ferir o namorado com a verdade de sua vida, decidiu romper e continuar na prostituição. Seguiu seu caminho, agora sozinha e guardando a mágoa de uma relação fracassada.
Dinah começou a ganhar muito dinheiro. Eram jóias de valor compradas toda semana. Investia em casas, terrenos e carros, conquistando um admirável patrimônio. Foi quando surgiu outra pessoa em sua vida, que, sem prometer nada, lhe ofereceria uma vida a dois distante da solidão que tanto temia.

Mesmo sendo linda e desejada pelos homens, a vaidade causava-lhe inquietação. Mudava a cor dos cabelos, submetia-se à cirurgias plásticas – uma ousadia na época – operou seus olhos tentando deixá-los puxados como os orientais, colocou silicone por todo seu corpo, acentuando suas curvas. No rosto, aplicou duas injeções de silicone para que suas bochechas ficassem ainda mais salientes.

Seu desejo, naquele momento, era se casar, mesmo sem amor, para não envelhecer sozinha. Queria um lugarzinho, sua casa para ter seus cachorros e um marido, tudo bem distante daquele mundo do Jardim Itatinga. Ela o conheceu no bairro, enquanto ela trabalhava e foi, então, que decidiram se casar.

Sua família, que a considerava uma ovelha negra, sabia de sua profissão e seu pai veio para a cerimônia de casamento no civil. Seu irmão tentou tirá-la da vida no prostíbulo, mas ela o questionou sobre seu sustento, se ele o faria. Ela sairia da prostituição se tivesse, fora dali, o mesmo padrão de vida. Em vão.

Após o casamento, continuou trabalhando no Itatinga. Seu marido, aos poucos, foi acabando com sua vida. Viciado em jogos, perdia todos os bens materiais por ela conquistados. Sem meios de contestar, ela cedia sob ameaças. O casamento, realizado sob o regime de separação parcial de bens, não despertava indícios de interesses por parte dele.

Quando sua situação financeira já estava comprometida com as dívidas do marido, começou a penhorar jóias, não mais recuperadas. Reflexo desses maus momentos é o presente: Dinah vive apenas com o que restou de sua opulência: uma casa, no mesmo Jardim Itatinga e nada mais.
Ela descobriu, anos depois do seu casamento, o mal que cometera. O homem com quem se casara, já tinha um filho. Não mais suportando tal situação, ela se separou. Seu marido seguiu sua vida, com outras mulheres e o mesmo vício que a levara à falência.

Dinah foi envelhecendo e seu corpo já não resistia mais ao ritmo do Jardim Itatinga. Ela tentou voltar para a sua terra natal, Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Alugava sua casa e, sem contrato que lhe assegurasse o pagamento, voltava para despejar o inquilino e arcar com as despesas deixadas pelo mau uso.

Por esse motivo e por não conseguir vender a casa pelo valor que julgava coerente, não pôde nunca deixar o Itatinga para viver uma nova vida. Prostituiu-se até os 60 anos de idade e só deixou de fazê-lo por uma doença da velhice, conseqüente das aplicações de silicone.
Aos 64 anos de idade, ela se lembra com tristeza e guarda, amargurada, vestígios do seu marcante passado. Seus olhos expressam claramente sua revolta. Pede a Deus mais 60 anos para que possa desfrutar da vida, como se fosse possível renascer.

Sem filhos, diz que nunca gostou de crianças. Agitada e de personalidade forte, sempre foi agredida pelos colegas de escola quando pequena e afirma que não aceita agressões às crianças, mas as quer bem longe de suas vistas. Embora diga que não goste, carrega mágoa por nunca ter conseguido engravidar, mesmo sem métodos contraceptivos.

Sua velhice é de solidão. Marcada pela indiferença de seus familiares e amigos que só se mostravam presentes enquanto os sustentava com o dinheiro da prostituição. Perdeu sua beleza, sua saúde, seus bens e a única coisa que havia conquistado no Itatinga e que a motivou passar por tudo isso: o dinheiro.

Hoje conta apenas com uma enfermeira do posto de saúde do bairro, definida por ela como um "anjo que cruzou o seu caminho". Sobrevive de doações de cestas básicas, de visitas esporádicas de assistentes sociais e sua renda está no aluguel de um dos quartos de sua casa.

Mesmo debilitada, ainda cuida de tarefas domésticas e de seus cachorros – suas únicas companhias. Administra seus próprios remédios e faz seus curativos aos fins de semana, quando o posto não está em funcionamento. Já aprendeu a conviver com dores constantes na perna e sua lucidez a permite ser independente.

Seu rosto exprime marcas de um amargo passado e de uma vida mal vivida. E assim também o é com seu corpo. Todo o silicone que deu formas e beleza à sua juventude, hoje a deforma. Rosto inchado, sem brilho. Olhos sofridos e que já não enxergam tão bem, um efeito colateral de antibióticos.

Apegada a Deus e à religião, diz que não se sente só, pois Ele nunca abandona ninguém. Fraternal e carinhosa, ainda tem encantos e, ao falar, demonstra um jeito de avó numa relação com os netos. Ao se despedir, ainda pede que Deus abençoe.

Seu desejo se limita a conseguir vaga em um asilo, em Ribeirão Preto, longe do Itatinga e de tudo que lembre seu passado. Quer tricô e conversa com outras senhoras que lhe façam companhia. Quer o dinheiro que sua casa vale para se sustentar longe daqui e, decididamente, acabar com qualquer vínculo com a zona do meretrício que fez da sua vida uma história para ser esquecida por ela e documentada na história do bairro.

CAPÍTULO 5: NAS PÁGINAS POLICIAIS

A fama do Jardim Itatinga nos anos anteriores foi abalada ante as notícias das páginas policiais dos jornais da época – Diário do Povo e Correio Popular. Crescentes, a violência e a criminalidade no bairro começavam a tomar grandes proporções, o que se explica pela mistura incerta de mulheres, bebidas, drogas e pela inexperiência daquelas prostitutas de lidar com dinheiro.

Conhecido como Caso Ênio Buck, o crime cometido no bairro Jardim Itatinga, no dia 1º de março de 1979, deu início ao processo de decadência. A violência passa a ritmar as noites de boêmia regadas a bebidas e dinheiro e principia por esvaziar as casas de bons clientes e a por um fim ao glamour.

Osmar dos Santos, na época com 22 anos e solteiro, era garçom na casa de Laudevina Borges. Uma casa luxuosa e com boa freqüência. Sem motivos aparentes, por volta das 19h30, Osmar se dirigiu ao quarto de Sônia, como Laudevina era conhecida. Ela estava repousando e tentando se recuperar de uma recente intervenção cirúrgica.
Sem que pudesse se defender, Sônia foi esfaqueada por Osmar. Em seguida, o garçom saiu do bairro num táxi, conduzido pelo motorista Luiz Leite Monteiro, que estava ciente do crime praticado. Com marcas de sangue nas roupas e no corpo, Osmar seguiu no sentido de São Paulo.
A polícia tinha sido avisada e os procurava. Após passarem pelo pedágio, da Rodovia dos Bandeirantes, próximo ao Município de Cajamar, em torno das 21h daquele mesmo dia, foram presos em flagrante. Foram levados à Delegacia daquela cidade, a fim de prestar depoimento.

A polícia suspeitava que o crime fora cometido a mando de Ênio Buck, ex-amásio da vítima, que trabalhava no local e já respondia por um processo aberto por ela, alegando agressões físicas.
No boletim de ocorrência da delegacia, Osmar afirma que cometera o crime a mando de Ênio, que lhe prometeu a recompensa de um milhão de cruzeiros.

Ênio tinha objetivos pessoais. Embora já estivesse morando com outra mulher, Wilma, ele tentava incansavelmente recuperar a exploração da rendosa casa de Sônia. Freqüentemente procurava pelos funcionários da mulher e os remetia ao seu advogado para que propusessem demandas trabalhistas contra ela.

Osmar conta ainda, em seu depoimento, que Ênio o instruiu a pegar um táxi e sair do bairro logo após o crime. Nada foi provado até então. As testemunhas diziam ter ouvido falar que ele era o mandante, mas não podiam confirmar a informação.

Ênio Buck, por sua vez, alegava que conhecera Osmar dos Santos casualmente no escritório de seu advogado. Ênio pedia reintegração de posse da casa de Laudevina, alegando ser seu sócio. Em resposta, o interventor de Sônia fez acordo com Ênio, arquivando o processo. A situação do pedido de posse significou um forte indício de co-autoria no crime e assim, o promotor o pronunciou.

Osmar e Ênio foram submetidos a júri popular. Ênio respondeu ao processo em liberdade mas começou a aterrorizar as testemunhas e oferecer-lhes dinheiro. Por esse motivo, foi decretada sua prisão preventiva. Seu advogado pediu a retirada de Ênio da Cadeia Pública para realizar internação na casa de Saúde Dr Bierrembach de Castro, em Campinas, por seu alegado mau estado clínico psiquiátrico. Queria um tratamento particular permanente. Alegava o advogado que Ênio causou auto-lesões graves.

Na seqüência foi pedido habeas corpus de Ênio. Negado, foi a júri e o tribunal o declarou inocente por cinco votos a dois. O resultado da sentença: Osmar dos Santos foi preso por quatro anos e Ênio Buck absolvido.

O promotor público entrou com recursos e Ênio foi novamente ao tribunal do júri. Ênio anexa ao seu processo um atestado médico dizendo que fez ponte de safena em 8 de setembro.
Na sentença foi declarado culpado e deveria cumprir uma pena de 12 anos de prisão, de acordo com o artigo 121 .

Em seguida, a Justiça recebe o requerimento de internação de Ênio Buck, por problemas de coração e ele é internado no Hospital Irmãos Penteado, com escolta permanente. Foram inúmeros os pedidos para que respondesse em liberdade, porém, todos negados.
Em 14 de dezembro de 1979, Ênio Buck foge do hospital e todos os órgãos de polícia passam a procurá-lo sem sucesso. Dezesseis anos depois, em 1º de outubro de 1997, ele pede a extinção de sua punibilidade e não há mais nada que a justiça possa fazer.

Ênio Buck foi localizado pelas autoras do livro no Estado do Rio de Janeiro, mas ele se negou a falar a respeito. Sua esposa, ao atender o telefone, disse que ele não estava. Em outras ligações, disse que Ênio não gostaria de falar. E, quando finalmente ele atendeu, alegou que nunca esteve em Campinas, que não conhece o Itatinga e que não poderia ajudar.

Em contradição ao processo criminal, o investigador de polícia, Antônio Lázaro Constanzo afirma que Ênio não teve qualquer ligação com o crime. Para ele, o caso explica-se pelo relacionamento entre Laudevina e o garçom Osmar, dependente químico, que teria cometido o crime devido a uma discussão salarial. Para o investigador, Ênio Buck faleceu em 2002.

Assim, como esse violento assassinato distanciou os clientes, atraiu a polícia e a imprensa, que passaram a dar uma atenção especial à transformação do bairro. Todo aquele tempo de luxúria foi acabando. O sucesso foi ascendente mas na década de 80 iniciou seu processo degradante. Esse foi o crime de maior repercussão na época. O Jardim Itatinga, desde então, dá continuidade a um processo de decadência e de uma crescente violência.

Segundo Lazinho, um dos motivos que levaram a criminalidade e as drogas ao Jardim Itatinga, foi a chegada de Ruth Mansur. " Quando ela veio para cá, vieram quadrilhas e quadrilhas atrás dele e aí o Jardim Itatinga bagunçou de vez. Foi quando os homens começaram a tomar conta da prostituição e o tráfico de drogas atingiu alta escala."

Os crimes, como roubos, furtos e acidentes de veículos, em conseqüência da ação de marginais, não saem nos jornais. Trata-se de uma omissão por parte dos envolvidos, que se negam a registrar ocorrências pelo receio da difamação por conta de estar na zona do meretrício.
Começa então um processo de reversão do confinamento da prostituição em Campinas. Nos anos 90 ela está de volta à região central e presente em outros lugares da cidade e também nos anúncios de jornais, em hotéis, em motéis, em casas de prostituição de luxo e renome na cidade.

A mesma sociedade, ou parcela, que as distanciou do convívio social é aquela que vai ao Jardim Itatinga, atraída pela especulação imobiliária e para sustentar a prostituição no bairro. É também essa mesma sociedade que encontra prostitutas nas calçadas, bares, praças, shoppings e restaurantes de Campinas, sem que sejam diferenciadas como tais.

CAPÍTULO 4: FAZ A FAMA E DEITA NA CAMA

Essa rua sem calçamento, com algumas polegadas de poeira, era habitada pelas classes mais pobres da população, ou seriam, as classes mais excluídas? Chegaram com suas experiências e expectativas de uma oportunidade. Os terrenos eram mais baratos do que em qualquer outro local da cidade, houve o apoio da prefeitura, era, enfim, um espaço criado só para elas.

O nome do bairro é Jardim Itatinga. Do tupi-guarani, Itatinga significa Pedra Branca, o mesmo nome da fazenda que foi desapropriada para sua construção. Estruturalmente, aquela zona distante do perímetro urbano não estava apta a receber novos habitantes. Não possuía iluminação, asfalto e saneamento básico, enfim, só tinha ruas demarcadas e as sarjetas.

Romantismo ou não, o sonho de ter suas casas, seu trabalho, seu espaço impulsionava aquelas mulheres a trabalhar mais e mais. Ambiciosas como sempre, foram juntando dinheiro. As mais antigas, as que atuavam anteriormente à formação do bairro, nas casas localizadas na região central e no bairro Taquaral, passaram de prostitutas a cafetinas, ou, donas de casas.

Entre as primeiras casas do bairro estão a da Maria Lúcia e da Cassilda. O número de meninas vindas de todos os cantos da cidade e, até do país, era crescente. Todas em busca do seu lugar ao sol do Itatinga. E a fama do bairro se espalhava. Nunca haviam criado um lugar assim: sexo, mulheres, bebidas e diversão à vontade.

Depois, foram chegando as casas da Maria Alice, da Paraguaia, da Poliana. Todas formadas por lindas mulheres, inclusive suas proprietárias. Surge também, a casa da Sônia, uma das primeiras boates do Itatinga, posteriormente transformada na casa Galo de Ouro, cuja fama correu o País. Eram shows de strip-tease, música ao vivo e a concorrência entre as casas, o que tornava as mulheres e o Itatinga ainda mais atraentes e interessantes.

Era uma mera fantasia, mas a impressão é que o desalinho daquelas mulheres, umas inexperientes, outras nem tanto, estava em perfeita harmonia com o resto do cenário, pois era igualmente impressionante a mistura de suas belezas naturais e da pobreza espiritual e humana daquele lugar.

No interior das casas, a boêmia, as lindas mulheres, a cerveja gelada e a música romântica. Do lado de fora, viam-se pessoas de todos os tons de pele, numa mistura incerta de ricos, pobres, negros, brancos, políticos, liberais, mulherengos e curiosos, todos especialmente atraídos e encantados com o excesso de liberdade e descontração das mulheres e do ambiente.

O rígido código moral a que estavam submetidas exigia-lhes a vaidade, a maquiagem, a feminilidade, delicadeza e elegância, desde o momento em que despertavam. Elas eram diferentes das esposas, das mulheres que os homens deixavam em suas casas. Essa relação entre homem e prostituta permitia o exercício de uma liberdade desconhecida no âmbito familiar.

Nas ruas, cada dia podia-se verificar um maior número de casas que, aos poucos, tomavam forma de bordel. As músicas atraíam seus fregueses e a referência passou a ser a diversidade de mulheres que ali habitavam. E elas não paravam de chegar.

Em seguida, começam a aparecer personagens coadjuvantes: seguranças para as casas, faxineiras, garçons e outros profissionais que viram naquele mundo de prostituição uma chance de sobrevivência e de manutenção de suas famílias. Aos poucos, o Jardim Itatinga vai se formando, crescendo, tornando-se a maior zona de confinamento da prostituição na América Latina e, mais do que isso, começa a ser conhecida nacionalmente.

A área foi tomando uma nova dimensão. Todas as casas do Itatinga têm a mesma estrutura. Não são casas com bom aproveitamento dos terrenos, como em áreas meramente residenciais. São pequenas cozinhas, salas apertadas com um bar e espaço para algumas mesinhas e longos corredores, com diversos quartos, à direita e à esquerda. Uma muralha, carros estacionados e quem passa na rua, não consegue enxergar o que acontece depois dos portões .

Mesmo após o declínio, ainda é assim. Há um sublime incentivo à prostituição naquele lugar. Ele permite e propicia a chegada de novas meninas que passam a morar e a trabalhar nas casas e que só saem nos fins de semana, quando têm para onde ir ou quem visitar. Durante a semana, trabalham na expectativa de receber muito bem pelos serviços e saírem dali um dia para seguir seus caminhos.

Esse é o panorama do Jardim Itatinga do final da década de 60 e início da de 70. A repressão sexual, o pudor e o sexo ainda tinham marcas de um tabu. A iniciação sexual dava-se com as prostitutas. Pais levavam filhos, orgulhosamente, para a chamada zona, para a primeira noite de um homem, onde se envolveriam com mulheres experientes que os ensinariam tudo sobre o sexo.

Seminuas e por vezes inteiramente despidas – pois elas não são nada pudicas – cantavam ou conversavam estridentemente. Nas ruas, elas pareciam estar inconscientes de qualquer exposição indevida de seus corpos, mas os meninos da época sentiam-se cada vez mais fascinados diante de tanta libertinagem.

Despudoradamente vestidas, nada mais que o absolutamente necessário, elevavam o grau de exposição de seus corpos de forma a causar escândalo. Eram seguidoras da moda e audaciosas em adotar as mais curtas, decotadas e sensuais vestimentas. Estavam sempre tão pouco vestidas que iam além da negligência da época.

Não faziam esforço para preservar uma aparência atraente, porque a beleza que ostentavam era natural, era uma questão de feminilidade. Mas mantinham-se sempre maquiadas, perfumadas e insinuantes. Tinham olhos expressivos e encantavam, provocavam e atraiam.

Ao entardecer, as ruas vão se iluminando. Os sons de vários estilos musicais se confundem naquela região. As luzes vermelhas, indicando o propósito das casas, vão se acendendo. As cervejas geladas vão sendo colocadas sobre a mesa. A fumaça de cigarro mistura ao cheiro da zona, ao perfume da mulher.

Enquanto isso, elas se preparavam para o sexo, para o trabalho que durará por toda uma noite. Meias-finas, de seda, lingeries minúsculas e os lençóis nas camas. Elas vão tomando a forma de prostitutas. Uma produção que resultará num atraente convite para extravasar os limites do desejo e do prazer.

O batom em tons fortes, rímel e lápis fazendo o contorno de seus olhos, as cores entrando em contraste com seus tons de pele, ombros resplandecentes, desnudos e bronzeados, estimulando a fantasia masculina. Algumas se esmeravam em exibir seus corpos, elas se sentiam desejadas e justificavam o apelido o bairro de laredo.

Maquiadas, pareciam tentar esconder o rosto naquela vida, como se tivessem a oportunidade de ter duas faces: a que é mãe, filha, amiga e, a outra, que é a profissional, que faz sexo em troca de dinheiro. O batom, daqueles vermelhos que lembram o pecado, o perfume doce daqueles que se reconhece de pronto e o caminhar a sala para esperar pelo primeiro homem da noite.

Fato interessante nesses bordéis é a luta inconsciente que seus proprietários, numa tentativa de administrar suas culpas, empreendiam. A discrição da entrada e da saída, a privacidade do quarto, a saleta onde se deixava a bebida, a intensidade das luzes, a cama, a piscina, os espelhos. Todos esses símbolos iam se tornando imprescindíveis.

Era na penumbra que aconteciam todos os rituais, além disso, ela servia para que os amantes não se vissem, não se enxergassem nem se relacionassem verdadeiramente. O lugar era para a clandestinidade e esse mistério de imaginar como ela era, permitia uma liberdade de fantasias, segundo suas próprias necessidades.
Existiam também as piscinas e as duchas nas casas mais luxuosas, através das quais os pecadores podiam exorcizar-se, limpar-se, purificar-se, corporalmente e orgasmicamente antes e depois de praticar o vício ou seja lá o que essa prática venha a ser.

As casas mais modernas ofereciam bebidas requintadas aos clientes, talvez para interferir na excitação ou para servir como um instrumento ilustrativo, ou, ainda, para acalmar e servir para amenizar a culpa dos amantes e, quase sempre, para disfarçar o medo que antecedia o desejo e o tédio que advinha do sexo pago.

Noite adentro, as músicas, a bebida, o cigarro, o perfume vão impregnando o ar, vão caracterizando que a hora do quarto está por vir. Combinam-se os preços, nada baratos pelo serviço e já estipulam o que vai acontecer dentro dos quartos. Expectativas e corpos ardentes entram nos quartos para esquecer que não há sentimento, o que importa é mesmo o prazer.

Entram nos quartos e, numa demonstração insinuante, deixam-nos certos de suas experiências e os deixam, simplesmente, ávidos pelo sexo e pelo desejo. É por isso que voltavam, é isso o que procuravam quando iam até lá: o sexo sem pudor, sem tabu, sem sentimentalismo, o que possivelmente não encontravam em suas casas, com suas mulheres, educadas para se casar e serem fiéis.

E lá iam elas, sacudindo suas carnes ao andarem nas ruas, ao dançarem nas casas, ao atraírem os olhares ao seu rebolado. Estimulavam comentários enaltecedores, dado que apareciam rigorosa e incomodamente adereçadas, com estilo, rendas, sedas e decotes. Era um fascínio ver aquelas mulheres.

Os bares do Jardim Itatinga serviram de cenário para muitos romances. Eram homens que se apaixonavam por aquelas mulheres e as queriam para suas vidas. Na dança, na aproximação, na fumaça de cigarro e depois de alguns copos de cerveja, eles se encantavam, não queriam ir embora. A polícia interveio por vezes, não era permitido aos clientes dormir na zona, mas eles sempre davam um jeito de ficar mais tempo.

Eram romances como aqueles de antigamente. Tocar as mãos, olhar nos olhos, dançar de corpo colado músicas que tocavam os corações, como canções de Cauby Peixoto e Ângela Maria. Aquela proximidade, feminilidade e postura num momento e aquele ardente desejo na cama provocava ciúmes, traições e maldizeres.

Mas esses mesmos romances foram aqueles que tiraram muitas mulheres da vida e da prostituição. Ousados e apaixonados, eles as buscavam, davam condições melhores de vida, realizavam o tão sonhado casamento. Há quem pense que elas eram facilmente identificadas como prostitutas, mas elas sabiam se comportar como damas da sociedade.

Há, nas muitas lendas e histórias que permeiam o Itatinga, o caso de um famoso piloto que atuava no Aeroporto Internacional de Viracopos, ao lado da zona e que se apaixonou por uma pequena. Ele sempre a procurava, nos dias em que desembarcava em Campinas. Até que a levou para conhecer sua família,estabelecendo-se uma empatia instantânea.

Pouco tempo depois, se casaram, como ela sonhara, mas com algo mais: o casamento contou com convidadas especiais: as prostitutas do Itatinga. As amigas tinham que estar lá e presenciar a concretização do sonho. Afinal, era tudo como manda o figurino – ou quase. As amigas da noiva organizaram, ali mesmo nos bordéis, o chá de cozinha. Juntaram parte do dinheiro dos programas para ajudar a fazer seu enxoval. E, como não poderia deixar de ser, arrumaram a noiva no dia do matrimônio.

Há ainda muitas outras histórias. O Itatinga é um lugar rico em lendas e histórias com final feliz. Segundo o jornalista Zaiman, havia um cidadão campineiro que adorava mulheres da zona, um habitué de zona. Era vendedor e investia parte de seus ganhos com as mulheres. Era casado e dizia à esposa que viajaria a Bauru a trabalho, sempre que passava a noite fora. "Até que um dia, sua mulher recebeu uma ligação misteriosa, informando que seu marido estaria na zona, rua tal, número tal, no Itatinga. Impaciente e curiosa, ela foi até lá", conta Zaiman.

Entrando no bairro, indignada com tamanha audácia, a esposa traída dirigiu-se à casa mencionada. Foi, corajosamente, bater à porta e já se preparava para perguntar à primeira mulher que atendesse onde estaria seu marido, se ela o conhecia, se poderia ajudá-la. Mas, para surpresa de todos, ele, o próprio marido, abre a porta.

Sua vestimenta no dia declarava uma indiscutível situação: ele estava apenas de cueca e nada do que falasse poderia contestar ou negar seus objetivos naquele lugar. Foi embora e depois de muito argumentar, disse que só ia à zona para dançar e se divertir e nada mais. Convidou, então, a mulher para que o acompanhasse até lá. Ela aceitou.

Assim, como quem não quer nada e como alguém que já conhecia e já era conhecida na zona pelo episódio com seu marido, foi apenas para comprovar que ele só ia para se divertir e não para ter relações sexuais. Embora fosse freqüentemente questionado pelos amigos sobre a sua amante da zona, sua mulher o aceitava assim e ficou com ele por muitos e muitos anos.

Mas não se trataram apenas de simples cidadãos campineiros. As histórias do Itatinga reservam-nos muitas surpresas. O meretrício foi assunto para discussão em Câmaras Municipais e no Congresso, em Brasília. Nas décadas de 70 e 80, políticos faziam romaria a Campinas para conhecer o bairro. Conta o folclore que muitos políticos de nomeada deslocavam-se à cidade, utilizando jatinhos.

Por muitos anos, o Itatinga foi ponto turístico da cidade. Com a industrialização e o desenvolvimento vertiginoso que Campinas conheceu naquelas décadas – com o registro de crescimento a taxas de 6 por cento ao ano -, a freqüência ao bairro avolumou-se, transformando-o em uma das principais zonas de meretrício do País.

O ex-governador do Estado de São Paulo Orestes Quércia, prefeito de Campinas à época da eclosão do Itatinga como um dos maiores centros de prostituição brasileiros, nega que houvesse freqüência de políticos. Segundo ele, "alguns políticos iam lá sim, ou talvez, ou não sei bem... mas se iam, era somente para ver, não se envolviam com as mulheres".

Dizem as línguas do Itatinga, que as portas da zona já foram abertas para jogadores de futebol, alguns em nível de Seleção Brasileira, para cantores de renome, empresários das indústrias de Campinas em ascensão e crescimento, políticos de todos os partidos e de todos os cargos públicos.
Essas mesmas visitas ilustres foram aquelas que justificaram o asfaltamento no bairro. Era a administração municipal do início da década de 70, sob o comando de Quércia, mostrando sua preocupação com a estrutura do bairro mais visitado da cidade. Por vezes, as prostitutas do Itatinga foram até o Palácio dos Jequitibás, a sede da Prefeitura, pedir as obras de asfaltamento e a iluminação do bairro, mas em vão.

Os governantes alegavam falta de verba, a burocracia para liberação do dinheiro, a falta de mão–de-obra, enfim, tudo era motivo para aquele bairro permanecer no esquecimento. Curiosamente, segundo lendas, as próprias meninas chegaram a indagar a um funcionário sobre os custos dessas obras, sobre o montante que a Prefeitura precisaria liberar e obtiveram a resposta.
Por dias e dias, as mulheres juntaram parte do dinheiro ganho com programas, colocaram-no em um saco plástico e chegaram ao valor estipulado. Viram as soluções dos problemas, dirigiram-se à Prefeitura, afoitas para encontrar aquele mesmo funcionário. Encontraram-no e entregaram o dinheiro. Surpreso, ele questionou:
Mas para que esse dinheiro todo?
Você nos disse quanto custaria o asfalto e que a Prefeitura não tinha esse dinheiro – responderam.
Correto. Mas o que pretendem?
Queremos que asfaltem nosso bairro. O dinheiro está aí – complementaram.
Ironicamente, muito tempo depois, conseguiram que o Jardim Itatinga fosse asfaltado, não com o dinheiro delas, mas por iniciativa do então prefeito, Orestes Quércia, como nos conta Dinah, uma prostituta do Itatinga que presenciou as gradativas melhorias do bairro. Ela afirma ainda que depois do asfaltamento vieram a água canalizada, até então proveniente de poços artesianos, e o esgoto no bairro.

Naquela época, a Casa da Sônia, era a mais requintada e mantinha a tradição de glamour e luxúria. Mas, contraditoriamente, foi ela também uma das razões do início de um processo decadente. Ali, aconteceu o maior crime do bairro, aquele que estigmatizou o Jardim Itatinga.















CAPÍTULO 3: A PROSTITUIÇÃO RUMO AO CONFINAMENTO

O cenário desses acontecimentos era próprio de um país que, em 1964, passava por grandes transformações. Naquele ano ocorreu o golpe militar, cujo regime se estendeu até 1984, quando foi deflagrada a campanha para as eleições diretas, que retomaria a democracia no Brasil. Um país inteiro vivia reprimido, tudo era censurado, principalmente aquilo que feria as ideologias militares. Compositores eram exilados por suas letras, consideradas agressivas ao governo, peças de teatro eram censuradas, e os jornais recebiam fiscais nas redações para que nada fosse publicado contra a vontade das autoridades políticas.

Foi em meio a esses acontecimentos que Campinas decidiu extinguir a prostituição, não apenas da área central, mas também, de qualquer local em que as mulheres pudessem cruzar os caminhos da sociedade. Foi em Campinas que aconteceu a formação de uma das maiores áreas de confinamento de prostituição, que ficou famosa nacionalmente. Por ação da sociedade e de políticos, todo um bairro foi configurado para isolar e abrigar as casas de prostituição.

O processo de confinamento não foi imediato, com a retirada das casas do centro e a transferência da prostituição para um bairro exclusivo, no caso, o Itatinga. Antes de ser definitivamente confinadas, em 1965, as prostitutas passaram por outros estágios: primeiro se instalaram na região da Lagoa do Taquaral, à época, pouco habitada.

A área onde se concentravam as prostitutas era próxima a um terreno doado aos padres salesianos para a construção de colégio e escola agrícola. A legislação a isentava de impostos. Algum tempo depois, a lei foi alterada e a Prefeitura decidiu isentar apenas as construções. Essa situação forçou os proprietários a dividir a área em lotes e vendê-los. Como o bairro não possuía infra-estrutura e era isolado, possuindo apenas algumas residências familiares, não oferecia condição para a construção de habitações regulares. Por essa razão, as terras foram desvalorizadas, facilitando a instalação das prostitutas.

No plano da classe política dominante, o bairro era ideal para se transformar em área nobre, dada sua localização, próxima ao centro da cidade, o que a privilegiava.Outro lado do problema era com relação à escassa vizinhança, que continuava a não aceitar as novas moradoras, em razão de seu comportamento. Muitas casas de prostituição acabavam comprometendo as famílias. As visitas ocorriam, geralmente, fora de hora, em meio a madrugada. Houve reações, iniciando, assim, um novo processo de exclusão, só que dessa vez para mais longe.

Enquanto estiveram no bairro Taquaral, algumas casas conquistaram fama, como não havia ocorrido na região central. As mais freqüentadas e consideradas de alto nível eram as da Maria Lúcia e da Paraguaia, mulheres que se iniciaram na prostituição e passaram a proprietárias. Essas cafetinas primavam pela qualidade de seus estabelecimentos. Suas casas ofereciam mulheres bonitas a preço elevado e ambiente requintado.

Onde quer que se instalassem, não faltavam mulheres, menos ainda clientes. Tanto sucesso não as poupou da fúria da sociedade, que não aceitava a idéia de ter como vizinhas mulheres de hábitos tão promíscuos que, aos olhos das famílias, desafiavam a moral e os preceitos religiosos.
É a partir desse momento que se trava a luta: sociedade versus promiscuidade. Reclamações de todo tipo chegavam às autoridades da cidade que, por sua vez, aparentavam ter interesses comerciais em retirar as prostitutas da região central e do Taquaral, pois algumas casas haviam permanecido no centro.

Às vésperas da mudança definitiva para o local que as receberia com o propósito exclusivo de abrigar a prostituição, o Jardim Itatinga, fizeram estágio em outro bairro, a meio caminho para o Itatinga. Esse local foi o Jardim Campos Elíseos. Bairro periférico, não tinha casas, apenas mato e algumas chácaras.

3.1 Operação Limpeza

O clima dos anos 60 levou vários segmentos de Campinas a se mobilizar no sentido do confinamento da prostituição. O movimento foi liderado pelo vereador Jamil Gadia, que também presidia a Câmara Municipal. Gadia pertencia à família tradicional e foi deputado estadual. "Ele, junto à polícia, acertou de fazer um bairro afastado para esses fins", afirma o vereador Romeu Santini que, na ocasião, iniciava sua vida política.

A ação da polícia foi decisiva. Foi responsável por levar, através de forte pressão, todas as prostitutas para a área que ficou nacionalmente conhecida como uma das maiores zonas de meretrício do país, o Jardim Itatinga. De acordo com o investigador de polícia, Antônio Lázaro Constanzo, o Lazinho, a zona de meretrício era a mais organizada do Brasil, quando a Delegacia de Jogos e Costumes atuava na cidade.

"A polícia não permitia a entrada de caminhoneiros, para não atrapalhar o trânsito. As mulheres não podiam aliciar clientes na rua e nem permaneciam em frente às casas. Os travestis não podiam se relacionar com os clientes e limitavam-se à função de faxineiros, com horários pré-estabelecidos de permanência no bairro", afirmou.

A polícia era também responsável por garantir o funcionamento da zona do meretrício, das 15h às 2h da madrugada e assegurar que nenhum homem dormiria lá. Os exames médicos eram exigidos pela mesma delegacia, cujo controle era feito, quinzenalmente, por meio de um fichamento.

Constavam nessas fichas informações como a identidade verdadeira das prostitutas, seus exames clínicos e ginecológicos, marcas pessoais como tatuagens e até contato com dentistas, que poderiam facilmente identificar vítimas de crimes.

Um acordo firmado entre a polícia e as donas de casas, garantia a sustentabilidade das prostitutas em casos de doenças venéreas detectadas em exames médicos, até a total recuperação. Lazinho afirma, ainda, que Leonardo Pedroso, Delegado titular da Academia de Policia, foi o grande responsável. "Foi um delegado inteligentíssimo que organizou o confinamento", elogiou.

Os interesses que moveram políticos eram respaldados na idéia de que a prostituição feria a ordem social, porém não deveria ser eliminada, apenas afastada. No entanto, interesses mais fortes moviam políticos, que também freqüentavam os bordéis.

O interesse real da classe política dominante à época era de valorizar a área do bairro Taquaral e de torná-la uma área nobre. Próximo ao centro e com um parque que, na atualidade, é ponto de referência para o lazer, a Prefeitura procurou dar início a um projeto de reurbanização, valorizando a área com a arborização do parque, a implantação de infraestrutura para novos loteamentos e venda de terrenos a preços elevados, oferecendo acesso apenas à classe rica da cidade. Dá-se início à ‘operação limpeza’.

Apesar desse forte motivo, houve ainda um segundo fator decisivo, segundo Santini, para afastar as prostitutas do centro: a sobrecarga de trabalho que elas acarretavam à polícia. As confusões causadas por famílias que se sentiam ofendidas com a presença das ‘intrusas’, somadas ao crescimento populacional da cidade, à existência de crimes que precisavam de uma ação urgente e à deficiência de pessoal na polícia, contribuíram para que houvesse o afastamento no espaço físico dessas mulheres. Com isso, ao menos, as confusões seriam evitadas.

O projeto, deflagrado na Administração Ruy Hellmesiter Novaes, não previa apenas a retirada das prostitutas do centro, mas também de todos os cortiços que existiam na região e que eram concentradores de famílias pobres trazidas pelo primeiro fluxo migratório que a cidade conheceu. Por isso, não apenas prostitutas, mas pessoas de baixa renda que habitavam esses aglomerados também foram retiradas. A operação limpeza foi retratada em reportagens dos jornais Correio Popular e Diário do Povo e saudada como um mecanismo de revitalização do centro.

Isso porque havia planos para uma reurbanização da área central. A operação limpeza teve por objetivo afastar todas as pessoas que, segundo a elite campineira, não faziam parte do contexto da classe média. O confinamento das prostitutas em Campinas, deu-se efetivamente em 1966, por força administrativa. Foi um processo inédito em todo país. Anteriormente, já havia ocorrido confinamento da prostituição em outras localidades, porém de forma natural, como o Mangue, no Rio de Janeiro, também um dos maiores prostíbulos da América Latina, assim como o bordel de Eny Cezarino, em Bauru, interior de São Paulo.
Esse estabelecimento ganhou fama devido à grande influência de sua dona, principalmente nos meios políticos. Todo esse poder rendeu sua imortalidade nas linhas da obra do jornalista Lucius de Mello, Eny e o Grande Bordel Brasileiro. No entanto, por pressão de autoridades, o confinamento em Campinas foi o primeiro e de que se tem notícia, o único.

Começou então uma batalha através da mídia, que dava sustentação à operação, denunciando casas e mulheres que saíam para o trottoir. Os jornais tiveram papel preponderante nessa batalha. Políticos apressavam-se em preparar o loteamento, o bairro Itatinga, bem distante do convívio social.

Não há documentos oficiais que comprovem a coerção. Porém, políticos e jornalistas, como Santini e Franco, que viveram a época, atestam que ela existiu de forma objetiva. O ex-prefeito de Campinas, Orestes Quércia, em cuja gestão foi asfaltado o Itatinga, procura isentar a classe política, em especial o ex-prefeito Ruy Novaes, como era chamado, de intervenção no processo. Para ele, a ação foi comandada pela Delegacia de Jogos e Costumes, pressionada pelas forças da sociedade.

Contudo, as reportagens de época mostram caminhões da Prefeitura atuando na mudança das famílias que eram retiradas dos cortiços, instalados em imensas casas e mansões deterioradas na região central, uma vez que no início dos anos 60, as famílias abastadas haviam construído em área nobre e recém loteada, o bairro Nova Campinas, a leste do Centro.

A pressão da sociedade foi efetiva e decisiva. Pessoas enviavam cartas a políticos e compareciam às delegacias de polícia para registrar queixas contra as prostitutas. Nos jornais e nas emissoras de rádio, como lembra Zaiman, repercutia o descontentamento da sociedade, o que levou editores e radialistas a emprestar apoio à ação que levou ao confinamento.

Assim que a área próxima ao Aeroporto de Viracopos ficou pronta, entraram em cena os policiais. Detentores de poderes para fazer cumprir a lei ou para punir quem a infringisse, não hesitaram em lançar mão dele para coagir prostitutas. Houve marcação cerrada, como lembra Santini: "ou elas iam ou não teriam mais paz". Eram ameaçadas e corriam risco de ser presas, caso continuassem a desfilar pelo centro da cidade. Não encontraram outra saída a não ser a porta da rua. As mulheres famosas e que tinham dinheiro apressaram-se em construir suas casas no Itatinga.

Apesar da grande torcida para o afastamento das prostitutas, nem todos foram a favor desse isolamento. O padre Milton Santana, personalidade histórica por suas lutas sociais e por ter sido molestado pelos militares do Golpe de 64, não apoiou o movimento e chegou a ser detido por essa razão. O padre, já falecido, era comunista e acreditava em direitos iguais para todos, como chegou a pregar à época.

Mas se o confinamento das prostitutas em Campinas não teve como base a lei, pois não é lícito excluir pessoas da própria sociedade, até porque prostituição não é crime - incorre em crime e pode ser punido quem explora o lenocínio -, tornou-se evidente que as ações foram baseadas em aparentes interesses próprios e econômicos.

Segundo Zaiman, "a sociedade não queria mais as mulheres ferindo a moral e os bons costumes, os políticos queriam valorizar os imóveis – casas e terrenos - das regiões onde a prostituição proliferara. Sobretudo o Taquaral, potencialmente uma área nobre e que, na década de 70, tornou-se uma das áreas mais valorizadas da cidade". A sociedade pressionou, a imprensa tomou partido e os policiais mostraram seu poder, executando o serviço", aponta Santini.















CAPÍTULO 2 – MERETRIZES E MERETRÍCIO

O Brasil, na década de 60, era habitado por uma sociedade conservadora. Uma época, em que tabus ainda tinham muita força, principalmente o sexual. Apesar de todo o conservadorismo, a sociedade convivia com a prostituição, com a presença de mulheres mais conhecidas, como se denominava antigamente, ‘mulheres de vida fácil’. Em Campinas elas se concentravam na região central.

A cidade era pequena, sua população não ultrapassava os 100 mil habitantes e o desenvolvimento começava a dar seus primeiros sinais. Quase não havia casas nas regiões periféricas, a maioria das famílias morava no centro. Campinas limitava-se a essa área central, aos bairros do Cambuí, Taquaral, Guanabara e Ponte Preta.

Era costume das famílias campineiras, ante a falta de opções de lazer, passear pelo centro da cidade para apreciar vitrines. Ainda havia o chamado footing, em que homens e mulheres flertavam. Nessa época a violência quase inexistia. Os cinemas situavam-se na área central, assim como bares e boates.

A cidade dispunha de linhas de bondes como transporte coletivo, cuja estrutura começou a ser desmontada em 1965, quando uma de suas primeiras linhas foi extinta e, definitivamente, teve seu fim em 1969, com a ampliação das linhas de ônibus. As ruas eram estreitas e calçadas por paralelepípedos.

Era nessa área que se situavam também a Estação Ferroviária e a Estação Rodoviária, locais de embarque e desembarque com movimento intenso e que concentravam muitas pessoas, oriundas de todos os cantos do país. A cidade crescia e era gente nova chegando todos os dias, um ambiente convidativo à prostituição.

Uma característica da Campinas da época é que, sem outras opções, uma parcela da população masculina que apreciava a vida noturna, os chamados boêmios, lotavam os bares tradicionais, como o Éden Bar, o Giovanetti, o Ideal e o Lo Schiavo, num bate-papo com amigos e um copo de cerveja na mão.

Anos antes, mais precisamente em meados da década de 50, proliferavam mais os bares populares, de má freqüência. Na época havia um bar que se tornou famoso e conhecido como Bar da Zona, assim identificado por seus freqüentadores e também por moradores da região.O estabelecimento localizava-se exatamente no local onde se concentravam as prostitutas, a região do Mercado Municipal, mais conhecido como Mercadão. A área era formada por um quadrilátero entre as ruas Visconde do Rio Branco, Senador Saraiva, Álvares Machado e Saldanha Marinho.

Não havia boates que abrigassem a prostituição, havia apenas casas, aparentemente comuns, que podiam ser confundidas com residências familiares. Nesse local, meretrizes desfilavam com muita maquiagem e roupas justas, consideradas escandalosas para a sociedade. De acordo com o jornalista Zaiman de Brito Franco, um dos raros cronistas de Campinas, as prostitutas chamavam a atenção. "No cinema, quando acontecia um burburinho, podia-se ter a certeza de que logo ali se encontrava uma prostituta. Eram mulheres que causavam inquietação em meio às demais".

2.1 Contos do Bar da Zona

A história do polêmico estabelecimento é contada neste livro por depoimentos de seu próprio dono, Gianfrancesco Romualdo, o Procópio, assim apelidado por sua semelhança com o ator de teatro Procópio Ferreira. É um senhor simpático, de cabelos brancos, que viveu intensamente a era da prostituição no centro de Campinas e que sorri ao lembrar os velhos tempos. Romualdo é proprietário do famoso Bar Voga, que há mais de 40 anos produz os melhores pastéis da cidade.
Como ele mesmo afirma, e se orgulha em falar, o nome verdadeiro do Bar da Zona era Fleur da Noite, assim mesmo, em francês!, como gosta de sublinhar. Esse era o nome do boteco que se situava nas proximidades do Mercadão.

Segundo Procópio, o Fleur da Noite não fechava. Zaiman, amigo de Procópio, reforça sua afirmação: "O bar ficava aberto dia e noite, não fechava nem mesmo em sexta-feira santa, nem quando caiu o Cine Rink", lembra o jornalista, referindo-se a uma das maiores tragédias ocorridas em Campinas, em 1951, quando o desabamento do cinema matou 25 pessoas e deixou cerca de 400 feridas. "As pessoas começavam uma briga na boate e terminavam no Bar da Zona, saíam do trabalho e iam para o Bar da Zona".

O movimento era intenso, tanto, que desencadeava grandes tumultos, a ponto de seu dono ter sido levado mais de uma vez à delegacia de polícia. Uma das vezes foi quando um pianista que morava em pensão próxima ao bar, precisou se mudar por estar devendo seis meses de aluguel. Em meio à inesperada saída, viu-se sem lugar para deixar seu instrumento e pediu para que Procópio o guardasse no bar.

Como o estabelecimento era grande, o pedido foi aceito e as asas da imaginação voaram. Naquela noite vários músicos, inclusive o pianista, resolveram tocar um tango. Juntaram as mesas, puseram uma mulher para dançar sobre elas, na companhia de um cantor, à meia-luz, "os dois se acabaram lá em cima", conta Procópio. Mas não demorou muito para que a festança tivesse um fim: "Dali a pouco aparecem os vermelhinhos (como eram chamados à época os carros da polícia)", explica.

Então, o policial o levou para a delegacia e perguntou: "o que você está fazendo naquele requinte vagabundo?" É então que o dedicado dono tem a chance de mostrar ao policial que aquele não era um lugar qualquer, e responde: "Vagabundo não, doutor, para começar ele tem nome francês, Fleur da Noite". E o delegado, entoando um som de pouco caso, responde: "Aquilo é uma flor que não se cheira!".

Outra passagem curiosa foi quando houve uma briga em que todo o bar acabou quebrado e o sogro de Procópio foi atirado contra a vitrine. Mais uma vez sobrou para o jovem proprietário, que ouviu a seguinte pergunta do delegado - que já o considerava freguês: "O que você quer hoje?", e ele, sem perder o humor responde: "não sei, você que me chamou aqui".

Por lá passavam muitas pessoas, caracteres que Procópio guarda em sua memória como prova definitiva de um passado memorável na pequena Campinas. Há também em suas lembranças, relatadas com bom humor, o caso de um cego que queria passar uma noite na zona.
Ajudado por alguns estudantes, o cego foi levado a uma das casas de prostituição e pôde satisfazer sua curiosidade e vontade. Uns quinze dias depois da aventura, quis voltar à casa. Sem ter quem o auxiliasse, resolveu ir sozinho. Porém, em meio às casas noturnas havia também casas de família e, para azar do moço, um vento para o lado contrário o fez errar o rumo e bater exatamente na residência familiar. Segundo o dono do bar, que assistia e ouvia a tudo, "o cego levou um coro para nunca mais querer voltar".

Com a ameaça de retirada das prostitutas daquela região, Procópio vendeu o bar. No entanto, o fato de o Fleur da Noite nunca fechar suas portas causou um pequeno incidente a seu comprador.
Após ter adquirido o estabelecimento de nome tão peculiar, o novo proprietário resolveu, pela primeira vez, fechá-lo uma noite. Mas o que não previa é que, por conta do pouco uso, as portas estavam enferrujadas. Quando as abaixou, caíram de uma só vez sobre sua cabeça.

Esse tipo de entretenimento noturno também era convidativo a muitos malandros, e o mais famoso deixou história para contar. Seu apelido era Galego. Usava um típico paletó comprido, sapato branco e marrom, todo charmoso e um andar antinatural. Famoso entre os companheiros de copo e entre as prostitutas, Galego era conhecido por sua lábia.

Tinha passado conversa em todas as mulheres de uma determinada casa. Assim fazia programas e saía sem pagar. Um dia, cansadas de ser passadas para trás, as meninas da casa juntaram-se para o troco. Combinaram que nenhuma faria programa com Galego, caso ele não pagasse adiantado.

Sabendo da história, Galego adiantou-se em armar um trambique. Apostou com os companheiros da noite que voltaria com os únicos dez coelhos que tinha no bolso. E assim fez. Foi à casa e pagou com os dez coelhos. No entanto, como o dinheiro havia ficado sobre a penteadeira, enquanto consumava-se o ato, com o pé Galego alcançou a nota e a trouxe consigo, rindo, provando assim para os amigos, que ganhara a aposta.

Logo depois veio a moça, "brava como uma cobra", afirma Procópio, e ele pergunta: "O que houve?". A moça, num misto de dúvida e raiva, contou: "Aquele quarto está mal-assombrado, me sumiu o dinheiro! Eu vi quando ele colocou o dinheiro lá".



"Pode ir agora", essa era frase que servia como sinal verde para os meninos atravessarem a rua. Saíam da aula e corriam para o local onde ficava a casa da senhora meretriz ou meretriz senhora, a Geni, que nas décadas de 50 e 60, iniciou a vida sexual de muitos meninos.

Nessa época, quando o assunto era sexo, nada de falar em alto e bom som, apenas sussurros eram ouvidos. Havia medo, vergonha, tabus. Os meninos, ainda menores de idade, temiam ser surpreendidos pela polícia no momento em que realizavam a aventura de passar uma noite na zona. "Imagina se fôssemos presos, o que nossas mães iam dizer", essa era a preocupação que rondava a cabeça dos rapazes, lembra Zaiman. "Enquanto um atravessava sozinho, os outros esperavam o chamado, confirmando se não havia riscos".

Nesse tempo, a década de 50, a casa da Geni situava-se na Rua Senador Saraiva. Contam que fora mulher de médico, muito bonita e rica. Um dia, viu-se abandonada pelo marido e, no desespero para manter uma filha, começou a se prostituir.

"Em uma época em que o sexo não era banalizado e era muito reprimido, ela ajudou a formar uma geração de pessoas amadurecidas para o sexo", conta Zaiman. Geni era mais conhecida entre os estudantes, que freqüentavam em maior número sua casa e pagavam meia, assim como no cinema e no teatro.

Ela nunca se desnudava, usava uma combinação, e não se misturava com as outras mulheres, tinha sua casa e trabalhava sozinha. Quando a zona no centro foi fechada, ela foi para a Rua Regente Feijó. Como sua casa era muito discreta não houve problema com a vizinhança.
Para se ter dimensão da fama de Geni, sua história serviu de inspiração para peça de teatro na década de 80, que ficou em cartaz por alguns anos. O título, Estudante Paga Meia, levou ao público, de forma bem humorada, personagens extraídos da noite campineira de então, e que teve como fio condutor a famosa história do estudante que pagava metade do preço para passar uma noite com Geni.

Escrita por Richard Polido, na ocasião estudante da Faculdade de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), a peça não era uma biografia, pois os personagens foram fruto de sua imaginação. Mas o folclore que girava em torno do nome de Geni, até muito tempo depois de sua existência, dá mostras da popularidade da mulher que virou lenda na cidade.

Estudante Paga Meia foi escrita para o I Festival de Teatro de Comunicações, FESTECO, da PUC-Campinas e rendeu prêmios de melhor peça e de melhor atriz a Rosana Lee, à época estudante de jornalismo. O autor diz não ter se aprofundado na vida da prostituta e que quis apenas realçar o folclore que seu nome desperta entre moradores antigos de Campinas. A tragicomédia, após fazer sucesso na faculdade, foi levada em campanhas de popularização do teatro.

A peça trouxe à memória de muitos a inesquecível primeira vez. O que rendeu a Geni, uma homenagem na coluna Baixa Sociedade, publicada no jornal Diário do Povo, primeiro, e, posteriormente, no Jornal de Hoje. O autor da coluna era Zaiman de Brito Franco, que não deixou de mencionar, com um certo saudosismo, o tempo em que muitos jovens, jornalistas, profissionais liberais, comerciantes, políticos, funcionários públicos, artistas, na época beirando os 45 anos, tiveram a primeira vez com a lendária meretriz.

Quando questionado sobre o paradeiro de Geni, Zaiman responde, em tom de piada, com a lembrança da brincadeira de um amigo que, um dia, na casa da senhora, encontra um disco do Agepê e solta a seguinte frase: "Olha! Um disco do Agepê, ele morreu?", e um amigo muito espirituoso o responde: "Olha, se não morreu deve estar puto, porque já faz alguns anos que foi enterrado".