sábado, 7 de março de 2009

CAPÍTULO 2 – MERETRIZES E MERETRÍCIO

O Brasil, na década de 60, era habitado por uma sociedade conservadora. Uma época, em que tabus ainda tinham muita força, principalmente o sexual. Apesar de todo o conservadorismo, a sociedade convivia com a prostituição, com a presença de mulheres mais conhecidas, como se denominava antigamente, ‘mulheres de vida fácil’. Em Campinas elas se concentravam na região central.

A cidade era pequena, sua população não ultrapassava os 100 mil habitantes e o desenvolvimento começava a dar seus primeiros sinais. Quase não havia casas nas regiões periféricas, a maioria das famílias morava no centro. Campinas limitava-se a essa área central, aos bairros do Cambuí, Taquaral, Guanabara e Ponte Preta.

Era costume das famílias campineiras, ante a falta de opções de lazer, passear pelo centro da cidade para apreciar vitrines. Ainda havia o chamado footing, em que homens e mulheres flertavam. Nessa época a violência quase inexistia. Os cinemas situavam-se na área central, assim como bares e boates.

A cidade dispunha de linhas de bondes como transporte coletivo, cuja estrutura começou a ser desmontada em 1965, quando uma de suas primeiras linhas foi extinta e, definitivamente, teve seu fim em 1969, com a ampliação das linhas de ônibus. As ruas eram estreitas e calçadas por paralelepípedos.

Era nessa área que se situavam também a Estação Ferroviária e a Estação Rodoviária, locais de embarque e desembarque com movimento intenso e que concentravam muitas pessoas, oriundas de todos os cantos do país. A cidade crescia e era gente nova chegando todos os dias, um ambiente convidativo à prostituição.

Uma característica da Campinas da época é que, sem outras opções, uma parcela da população masculina que apreciava a vida noturna, os chamados boêmios, lotavam os bares tradicionais, como o Éden Bar, o Giovanetti, o Ideal e o Lo Schiavo, num bate-papo com amigos e um copo de cerveja na mão.

Anos antes, mais precisamente em meados da década de 50, proliferavam mais os bares populares, de má freqüência. Na época havia um bar que se tornou famoso e conhecido como Bar da Zona, assim identificado por seus freqüentadores e também por moradores da região.O estabelecimento localizava-se exatamente no local onde se concentravam as prostitutas, a região do Mercado Municipal, mais conhecido como Mercadão. A área era formada por um quadrilátero entre as ruas Visconde do Rio Branco, Senador Saraiva, Álvares Machado e Saldanha Marinho.

Não havia boates que abrigassem a prostituição, havia apenas casas, aparentemente comuns, que podiam ser confundidas com residências familiares. Nesse local, meretrizes desfilavam com muita maquiagem e roupas justas, consideradas escandalosas para a sociedade. De acordo com o jornalista Zaiman de Brito Franco, um dos raros cronistas de Campinas, as prostitutas chamavam a atenção. "No cinema, quando acontecia um burburinho, podia-se ter a certeza de que logo ali se encontrava uma prostituta. Eram mulheres que causavam inquietação em meio às demais".

2.1 Contos do Bar da Zona

A história do polêmico estabelecimento é contada neste livro por depoimentos de seu próprio dono, Gianfrancesco Romualdo, o Procópio, assim apelidado por sua semelhança com o ator de teatro Procópio Ferreira. É um senhor simpático, de cabelos brancos, que viveu intensamente a era da prostituição no centro de Campinas e que sorri ao lembrar os velhos tempos. Romualdo é proprietário do famoso Bar Voga, que há mais de 40 anos produz os melhores pastéis da cidade.
Como ele mesmo afirma, e se orgulha em falar, o nome verdadeiro do Bar da Zona era Fleur da Noite, assim mesmo, em francês!, como gosta de sublinhar. Esse era o nome do boteco que se situava nas proximidades do Mercadão.

Segundo Procópio, o Fleur da Noite não fechava. Zaiman, amigo de Procópio, reforça sua afirmação: "O bar ficava aberto dia e noite, não fechava nem mesmo em sexta-feira santa, nem quando caiu o Cine Rink", lembra o jornalista, referindo-se a uma das maiores tragédias ocorridas em Campinas, em 1951, quando o desabamento do cinema matou 25 pessoas e deixou cerca de 400 feridas. "As pessoas começavam uma briga na boate e terminavam no Bar da Zona, saíam do trabalho e iam para o Bar da Zona".

O movimento era intenso, tanto, que desencadeava grandes tumultos, a ponto de seu dono ter sido levado mais de uma vez à delegacia de polícia. Uma das vezes foi quando um pianista que morava em pensão próxima ao bar, precisou se mudar por estar devendo seis meses de aluguel. Em meio à inesperada saída, viu-se sem lugar para deixar seu instrumento e pediu para que Procópio o guardasse no bar.

Como o estabelecimento era grande, o pedido foi aceito e as asas da imaginação voaram. Naquela noite vários músicos, inclusive o pianista, resolveram tocar um tango. Juntaram as mesas, puseram uma mulher para dançar sobre elas, na companhia de um cantor, à meia-luz, "os dois se acabaram lá em cima", conta Procópio. Mas não demorou muito para que a festança tivesse um fim: "Dali a pouco aparecem os vermelhinhos (como eram chamados à época os carros da polícia)", explica.

Então, o policial o levou para a delegacia e perguntou: "o que você está fazendo naquele requinte vagabundo?" É então que o dedicado dono tem a chance de mostrar ao policial que aquele não era um lugar qualquer, e responde: "Vagabundo não, doutor, para começar ele tem nome francês, Fleur da Noite". E o delegado, entoando um som de pouco caso, responde: "Aquilo é uma flor que não se cheira!".

Outra passagem curiosa foi quando houve uma briga em que todo o bar acabou quebrado e o sogro de Procópio foi atirado contra a vitrine. Mais uma vez sobrou para o jovem proprietário, que ouviu a seguinte pergunta do delegado - que já o considerava freguês: "O que você quer hoje?", e ele, sem perder o humor responde: "não sei, você que me chamou aqui".

Por lá passavam muitas pessoas, caracteres que Procópio guarda em sua memória como prova definitiva de um passado memorável na pequena Campinas. Há também em suas lembranças, relatadas com bom humor, o caso de um cego que queria passar uma noite na zona.
Ajudado por alguns estudantes, o cego foi levado a uma das casas de prostituição e pôde satisfazer sua curiosidade e vontade. Uns quinze dias depois da aventura, quis voltar à casa. Sem ter quem o auxiliasse, resolveu ir sozinho. Porém, em meio às casas noturnas havia também casas de família e, para azar do moço, um vento para o lado contrário o fez errar o rumo e bater exatamente na residência familiar. Segundo o dono do bar, que assistia e ouvia a tudo, "o cego levou um coro para nunca mais querer voltar".

Com a ameaça de retirada das prostitutas daquela região, Procópio vendeu o bar. No entanto, o fato de o Fleur da Noite nunca fechar suas portas causou um pequeno incidente a seu comprador.
Após ter adquirido o estabelecimento de nome tão peculiar, o novo proprietário resolveu, pela primeira vez, fechá-lo uma noite. Mas o que não previa é que, por conta do pouco uso, as portas estavam enferrujadas. Quando as abaixou, caíram de uma só vez sobre sua cabeça.

Esse tipo de entretenimento noturno também era convidativo a muitos malandros, e o mais famoso deixou história para contar. Seu apelido era Galego. Usava um típico paletó comprido, sapato branco e marrom, todo charmoso e um andar antinatural. Famoso entre os companheiros de copo e entre as prostitutas, Galego era conhecido por sua lábia.

Tinha passado conversa em todas as mulheres de uma determinada casa. Assim fazia programas e saía sem pagar. Um dia, cansadas de ser passadas para trás, as meninas da casa juntaram-se para o troco. Combinaram que nenhuma faria programa com Galego, caso ele não pagasse adiantado.

Sabendo da história, Galego adiantou-se em armar um trambique. Apostou com os companheiros da noite que voltaria com os únicos dez coelhos que tinha no bolso. E assim fez. Foi à casa e pagou com os dez coelhos. No entanto, como o dinheiro havia ficado sobre a penteadeira, enquanto consumava-se o ato, com o pé Galego alcançou a nota e a trouxe consigo, rindo, provando assim para os amigos, que ganhara a aposta.

Logo depois veio a moça, "brava como uma cobra", afirma Procópio, e ele pergunta: "O que houve?". A moça, num misto de dúvida e raiva, contou: "Aquele quarto está mal-assombrado, me sumiu o dinheiro! Eu vi quando ele colocou o dinheiro lá".



"Pode ir agora", essa era frase que servia como sinal verde para os meninos atravessarem a rua. Saíam da aula e corriam para o local onde ficava a casa da senhora meretriz ou meretriz senhora, a Geni, que nas décadas de 50 e 60, iniciou a vida sexual de muitos meninos.

Nessa época, quando o assunto era sexo, nada de falar em alto e bom som, apenas sussurros eram ouvidos. Havia medo, vergonha, tabus. Os meninos, ainda menores de idade, temiam ser surpreendidos pela polícia no momento em que realizavam a aventura de passar uma noite na zona. "Imagina se fôssemos presos, o que nossas mães iam dizer", essa era a preocupação que rondava a cabeça dos rapazes, lembra Zaiman. "Enquanto um atravessava sozinho, os outros esperavam o chamado, confirmando se não havia riscos".

Nesse tempo, a década de 50, a casa da Geni situava-se na Rua Senador Saraiva. Contam que fora mulher de médico, muito bonita e rica. Um dia, viu-se abandonada pelo marido e, no desespero para manter uma filha, começou a se prostituir.

"Em uma época em que o sexo não era banalizado e era muito reprimido, ela ajudou a formar uma geração de pessoas amadurecidas para o sexo", conta Zaiman. Geni era mais conhecida entre os estudantes, que freqüentavam em maior número sua casa e pagavam meia, assim como no cinema e no teatro.

Ela nunca se desnudava, usava uma combinação, e não se misturava com as outras mulheres, tinha sua casa e trabalhava sozinha. Quando a zona no centro foi fechada, ela foi para a Rua Regente Feijó. Como sua casa era muito discreta não houve problema com a vizinhança.
Para se ter dimensão da fama de Geni, sua história serviu de inspiração para peça de teatro na década de 80, que ficou em cartaz por alguns anos. O título, Estudante Paga Meia, levou ao público, de forma bem humorada, personagens extraídos da noite campineira de então, e que teve como fio condutor a famosa história do estudante que pagava metade do preço para passar uma noite com Geni.

Escrita por Richard Polido, na ocasião estudante da Faculdade de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), a peça não era uma biografia, pois os personagens foram fruto de sua imaginação. Mas o folclore que girava em torno do nome de Geni, até muito tempo depois de sua existência, dá mostras da popularidade da mulher que virou lenda na cidade.

Estudante Paga Meia foi escrita para o I Festival de Teatro de Comunicações, FESTECO, da PUC-Campinas e rendeu prêmios de melhor peça e de melhor atriz a Rosana Lee, à época estudante de jornalismo. O autor diz não ter se aprofundado na vida da prostituta e que quis apenas realçar o folclore que seu nome desperta entre moradores antigos de Campinas. A tragicomédia, após fazer sucesso na faculdade, foi levada em campanhas de popularização do teatro.

A peça trouxe à memória de muitos a inesquecível primeira vez. O que rendeu a Geni, uma homenagem na coluna Baixa Sociedade, publicada no jornal Diário do Povo, primeiro, e, posteriormente, no Jornal de Hoje. O autor da coluna era Zaiman de Brito Franco, que não deixou de mencionar, com um certo saudosismo, o tempo em que muitos jovens, jornalistas, profissionais liberais, comerciantes, políticos, funcionários públicos, artistas, na época beirando os 45 anos, tiveram a primeira vez com a lendária meretriz.

Quando questionado sobre o paradeiro de Geni, Zaiman responde, em tom de piada, com a lembrança da brincadeira de um amigo que, um dia, na casa da senhora, encontra um disco do Agepê e solta a seguinte frase: "Olha! Um disco do Agepê, ele morreu?", e um amigo muito espirituoso o responde: "Olha, se não morreu deve estar puto, porque já faz alguns anos que foi enterrado".
















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