sábado, 7 de março de 2009

CAPÍTULO 4: FAZ A FAMA E DEITA NA CAMA

Essa rua sem calçamento, com algumas polegadas de poeira, era habitada pelas classes mais pobres da população, ou seriam, as classes mais excluídas? Chegaram com suas experiências e expectativas de uma oportunidade. Os terrenos eram mais baratos do que em qualquer outro local da cidade, houve o apoio da prefeitura, era, enfim, um espaço criado só para elas.

O nome do bairro é Jardim Itatinga. Do tupi-guarani, Itatinga significa Pedra Branca, o mesmo nome da fazenda que foi desapropriada para sua construção. Estruturalmente, aquela zona distante do perímetro urbano não estava apta a receber novos habitantes. Não possuía iluminação, asfalto e saneamento básico, enfim, só tinha ruas demarcadas e as sarjetas.

Romantismo ou não, o sonho de ter suas casas, seu trabalho, seu espaço impulsionava aquelas mulheres a trabalhar mais e mais. Ambiciosas como sempre, foram juntando dinheiro. As mais antigas, as que atuavam anteriormente à formação do bairro, nas casas localizadas na região central e no bairro Taquaral, passaram de prostitutas a cafetinas, ou, donas de casas.

Entre as primeiras casas do bairro estão a da Maria Lúcia e da Cassilda. O número de meninas vindas de todos os cantos da cidade e, até do país, era crescente. Todas em busca do seu lugar ao sol do Itatinga. E a fama do bairro se espalhava. Nunca haviam criado um lugar assim: sexo, mulheres, bebidas e diversão à vontade.

Depois, foram chegando as casas da Maria Alice, da Paraguaia, da Poliana. Todas formadas por lindas mulheres, inclusive suas proprietárias. Surge também, a casa da Sônia, uma das primeiras boates do Itatinga, posteriormente transformada na casa Galo de Ouro, cuja fama correu o País. Eram shows de strip-tease, música ao vivo e a concorrência entre as casas, o que tornava as mulheres e o Itatinga ainda mais atraentes e interessantes.

Era uma mera fantasia, mas a impressão é que o desalinho daquelas mulheres, umas inexperientes, outras nem tanto, estava em perfeita harmonia com o resto do cenário, pois era igualmente impressionante a mistura de suas belezas naturais e da pobreza espiritual e humana daquele lugar.

No interior das casas, a boêmia, as lindas mulheres, a cerveja gelada e a música romântica. Do lado de fora, viam-se pessoas de todos os tons de pele, numa mistura incerta de ricos, pobres, negros, brancos, políticos, liberais, mulherengos e curiosos, todos especialmente atraídos e encantados com o excesso de liberdade e descontração das mulheres e do ambiente.

O rígido código moral a que estavam submetidas exigia-lhes a vaidade, a maquiagem, a feminilidade, delicadeza e elegância, desde o momento em que despertavam. Elas eram diferentes das esposas, das mulheres que os homens deixavam em suas casas. Essa relação entre homem e prostituta permitia o exercício de uma liberdade desconhecida no âmbito familiar.

Nas ruas, cada dia podia-se verificar um maior número de casas que, aos poucos, tomavam forma de bordel. As músicas atraíam seus fregueses e a referência passou a ser a diversidade de mulheres que ali habitavam. E elas não paravam de chegar.

Em seguida, começam a aparecer personagens coadjuvantes: seguranças para as casas, faxineiras, garçons e outros profissionais que viram naquele mundo de prostituição uma chance de sobrevivência e de manutenção de suas famílias. Aos poucos, o Jardim Itatinga vai se formando, crescendo, tornando-se a maior zona de confinamento da prostituição na América Latina e, mais do que isso, começa a ser conhecida nacionalmente.

A área foi tomando uma nova dimensão. Todas as casas do Itatinga têm a mesma estrutura. Não são casas com bom aproveitamento dos terrenos, como em áreas meramente residenciais. São pequenas cozinhas, salas apertadas com um bar e espaço para algumas mesinhas e longos corredores, com diversos quartos, à direita e à esquerda. Uma muralha, carros estacionados e quem passa na rua, não consegue enxergar o que acontece depois dos portões .

Mesmo após o declínio, ainda é assim. Há um sublime incentivo à prostituição naquele lugar. Ele permite e propicia a chegada de novas meninas que passam a morar e a trabalhar nas casas e que só saem nos fins de semana, quando têm para onde ir ou quem visitar. Durante a semana, trabalham na expectativa de receber muito bem pelos serviços e saírem dali um dia para seguir seus caminhos.

Esse é o panorama do Jardim Itatinga do final da década de 60 e início da de 70. A repressão sexual, o pudor e o sexo ainda tinham marcas de um tabu. A iniciação sexual dava-se com as prostitutas. Pais levavam filhos, orgulhosamente, para a chamada zona, para a primeira noite de um homem, onde se envolveriam com mulheres experientes que os ensinariam tudo sobre o sexo.

Seminuas e por vezes inteiramente despidas – pois elas não são nada pudicas – cantavam ou conversavam estridentemente. Nas ruas, elas pareciam estar inconscientes de qualquer exposição indevida de seus corpos, mas os meninos da época sentiam-se cada vez mais fascinados diante de tanta libertinagem.

Despudoradamente vestidas, nada mais que o absolutamente necessário, elevavam o grau de exposição de seus corpos de forma a causar escândalo. Eram seguidoras da moda e audaciosas em adotar as mais curtas, decotadas e sensuais vestimentas. Estavam sempre tão pouco vestidas que iam além da negligência da época.

Não faziam esforço para preservar uma aparência atraente, porque a beleza que ostentavam era natural, era uma questão de feminilidade. Mas mantinham-se sempre maquiadas, perfumadas e insinuantes. Tinham olhos expressivos e encantavam, provocavam e atraiam.

Ao entardecer, as ruas vão se iluminando. Os sons de vários estilos musicais se confundem naquela região. As luzes vermelhas, indicando o propósito das casas, vão se acendendo. As cervejas geladas vão sendo colocadas sobre a mesa. A fumaça de cigarro mistura ao cheiro da zona, ao perfume da mulher.

Enquanto isso, elas se preparavam para o sexo, para o trabalho que durará por toda uma noite. Meias-finas, de seda, lingeries minúsculas e os lençóis nas camas. Elas vão tomando a forma de prostitutas. Uma produção que resultará num atraente convite para extravasar os limites do desejo e do prazer.

O batom em tons fortes, rímel e lápis fazendo o contorno de seus olhos, as cores entrando em contraste com seus tons de pele, ombros resplandecentes, desnudos e bronzeados, estimulando a fantasia masculina. Algumas se esmeravam em exibir seus corpos, elas se sentiam desejadas e justificavam o apelido o bairro de laredo.

Maquiadas, pareciam tentar esconder o rosto naquela vida, como se tivessem a oportunidade de ter duas faces: a que é mãe, filha, amiga e, a outra, que é a profissional, que faz sexo em troca de dinheiro. O batom, daqueles vermelhos que lembram o pecado, o perfume doce daqueles que se reconhece de pronto e o caminhar a sala para esperar pelo primeiro homem da noite.

Fato interessante nesses bordéis é a luta inconsciente que seus proprietários, numa tentativa de administrar suas culpas, empreendiam. A discrição da entrada e da saída, a privacidade do quarto, a saleta onde se deixava a bebida, a intensidade das luzes, a cama, a piscina, os espelhos. Todos esses símbolos iam se tornando imprescindíveis.

Era na penumbra que aconteciam todos os rituais, além disso, ela servia para que os amantes não se vissem, não se enxergassem nem se relacionassem verdadeiramente. O lugar era para a clandestinidade e esse mistério de imaginar como ela era, permitia uma liberdade de fantasias, segundo suas próprias necessidades.
Existiam também as piscinas e as duchas nas casas mais luxuosas, através das quais os pecadores podiam exorcizar-se, limpar-se, purificar-se, corporalmente e orgasmicamente antes e depois de praticar o vício ou seja lá o que essa prática venha a ser.

As casas mais modernas ofereciam bebidas requintadas aos clientes, talvez para interferir na excitação ou para servir como um instrumento ilustrativo, ou, ainda, para acalmar e servir para amenizar a culpa dos amantes e, quase sempre, para disfarçar o medo que antecedia o desejo e o tédio que advinha do sexo pago.

Noite adentro, as músicas, a bebida, o cigarro, o perfume vão impregnando o ar, vão caracterizando que a hora do quarto está por vir. Combinam-se os preços, nada baratos pelo serviço e já estipulam o que vai acontecer dentro dos quartos. Expectativas e corpos ardentes entram nos quartos para esquecer que não há sentimento, o que importa é mesmo o prazer.

Entram nos quartos e, numa demonstração insinuante, deixam-nos certos de suas experiências e os deixam, simplesmente, ávidos pelo sexo e pelo desejo. É por isso que voltavam, é isso o que procuravam quando iam até lá: o sexo sem pudor, sem tabu, sem sentimentalismo, o que possivelmente não encontravam em suas casas, com suas mulheres, educadas para se casar e serem fiéis.

E lá iam elas, sacudindo suas carnes ao andarem nas ruas, ao dançarem nas casas, ao atraírem os olhares ao seu rebolado. Estimulavam comentários enaltecedores, dado que apareciam rigorosa e incomodamente adereçadas, com estilo, rendas, sedas e decotes. Era um fascínio ver aquelas mulheres.

Os bares do Jardim Itatinga serviram de cenário para muitos romances. Eram homens que se apaixonavam por aquelas mulheres e as queriam para suas vidas. Na dança, na aproximação, na fumaça de cigarro e depois de alguns copos de cerveja, eles se encantavam, não queriam ir embora. A polícia interveio por vezes, não era permitido aos clientes dormir na zona, mas eles sempre davam um jeito de ficar mais tempo.

Eram romances como aqueles de antigamente. Tocar as mãos, olhar nos olhos, dançar de corpo colado músicas que tocavam os corações, como canções de Cauby Peixoto e Ângela Maria. Aquela proximidade, feminilidade e postura num momento e aquele ardente desejo na cama provocava ciúmes, traições e maldizeres.

Mas esses mesmos romances foram aqueles que tiraram muitas mulheres da vida e da prostituição. Ousados e apaixonados, eles as buscavam, davam condições melhores de vida, realizavam o tão sonhado casamento. Há quem pense que elas eram facilmente identificadas como prostitutas, mas elas sabiam se comportar como damas da sociedade.

Há, nas muitas lendas e histórias que permeiam o Itatinga, o caso de um famoso piloto que atuava no Aeroporto Internacional de Viracopos, ao lado da zona e que se apaixonou por uma pequena. Ele sempre a procurava, nos dias em que desembarcava em Campinas. Até que a levou para conhecer sua família,estabelecendo-se uma empatia instantânea.

Pouco tempo depois, se casaram, como ela sonhara, mas com algo mais: o casamento contou com convidadas especiais: as prostitutas do Itatinga. As amigas tinham que estar lá e presenciar a concretização do sonho. Afinal, era tudo como manda o figurino – ou quase. As amigas da noiva organizaram, ali mesmo nos bordéis, o chá de cozinha. Juntaram parte do dinheiro dos programas para ajudar a fazer seu enxoval. E, como não poderia deixar de ser, arrumaram a noiva no dia do matrimônio.

Há ainda muitas outras histórias. O Itatinga é um lugar rico em lendas e histórias com final feliz. Segundo o jornalista Zaiman, havia um cidadão campineiro que adorava mulheres da zona, um habitué de zona. Era vendedor e investia parte de seus ganhos com as mulheres. Era casado e dizia à esposa que viajaria a Bauru a trabalho, sempre que passava a noite fora. "Até que um dia, sua mulher recebeu uma ligação misteriosa, informando que seu marido estaria na zona, rua tal, número tal, no Itatinga. Impaciente e curiosa, ela foi até lá", conta Zaiman.

Entrando no bairro, indignada com tamanha audácia, a esposa traída dirigiu-se à casa mencionada. Foi, corajosamente, bater à porta e já se preparava para perguntar à primeira mulher que atendesse onde estaria seu marido, se ela o conhecia, se poderia ajudá-la. Mas, para surpresa de todos, ele, o próprio marido, abre a porta.

Sua vestimenta no dia declarava uma indiscutível situação: ele estava apenas de cueca e nada do que falasse poderia contestar ou negar seus objetivos naquele lugar. Foi embora e depois de muito argumentar, disse que só ia à zona para dançar e se divertir e nada mais. Convidou, então, a mulher para que o acompanhasse até lá. Ela aceitou.

Assim, como quem não quer nada e como alguém que já conhecia e já era conhecida na zona pelo episódio com seu marido, foi apenas para comprovar que ele só ia para se divertir e não para ter relações sexuais. Embora fosse freqüentemente questionado pelos amigos sobre a sua amante da zona, sua mulher o aceitava assim e ficou com ele por muitos e muitos anos.

Mas não se trataram apenas de simples cidadãos campineiros. As histórias do Itatinga reservam-nos muitas surpresas. O meretrício foi assunto para discussão em Câmaras Municipais e no Congresso, em Brasília. Nas décadas de 70 e 80, políticos faziam romaria a Campinas para conhecer o bairro. Conta o folclore que muitos políticos de nomeada deslocavam-se à cidade, utilizando jatinhos.

Por muitos anos, o Itatinga foi ponto turístico da cidade. Com a industrialização e o desenvolvimento vertiginoso que Campinas conheceu naquelas décadas – com o registro de crescimento a taxas de 6 por cento ao ano -, a freqüência ao bairro avolumou-se, transformando-o em uma das principais zonas de meretrício do País.

O ex-governador do Estado de São Paulo Orestes Quércia, prefeito de Campinas à época da eclosão do Itatinga como um dos maiores centros de prostituição brasileiros, nega que houvesse freqüência de políticos. Segundo ele, "alguns políticos iam lá sim, ou talvez, ou não sei bem... mas se iam, era somente para ver, não se envolviam com as mulheres".

Dizem as línguas do Itatinga, que as portas da zona já foram abertas para jogadores de futebol, alguns em nível de Seleção Brasileira, para cantores de renome, empresários das indústrias de Campinas em ascensão e crescimento, políticos de todos os partidos e de todos os cargos públicos.
Essas mesmas visitas ilustres foram aquelas que justificaram o asfaltamento no bairro. Era a administração municipal do início da década de 70, sob o comando de Quércia, mostrando sua preocupação com a estrutura do bairro mais visitado da cidade. Por vezes, as prostitutas do Itatinga foram até o Palácio dos Jequitibás, a sede da Prefeitura, pedir as obras de asfaltamento e a iluminação do bairro, mas em vão.

Os governantes alegavam falta de verba, a burocracia para liberação do dinheiro, a falta de mão–de-obra, enfim, tudo era motivo para aquele bairro permanecer no esquecimento. Curiosamente, segundo lendas, as próprias meninas chegaram a indagar a um funcionário sobre os custos dessas obras, sobre o montante que a Prefeitura precisaria liberar e obtiveram a resposta.
Por dias e dias, as mulheres juntaram parte do dinheiro ganho com programas, colocaram-no em um saco plástico e chegaram ao valor estipulado. Viram as soluções dos problemas, dirigiram-se à Prefeitura, afoitas para encontrar aquele mesmo funcionário. Encontraram-no e entregaram o dinheiro. Surpreso, ele questionou:
Mas para que esse dinheiro todo?
Você nos disse quanto custaria o asfalto e que a Prefeitura não tinha esse dinheiro – responderam.
Correto. Mas o que pretendem?
Queremos que asfaltem nosso bairro. O dinheiro está aí – complementaram.
Ironicamente, muito tempo depois, conseguiram que o Jardim Itatinga fosse asfaltado, não com o dinheiro delas, mas por iniciativa do então prefeito, Orestes Quércia, como nos conta Dinah, uma prostituta do Itatinga que presenciou as gradativas melhorias do bairro. Ela afirma ainda que depois do asfaltamento vieram a água canalizada, até então proveniente de poços artesianos, e o esgoto no bairro.

Naquela época, a Casa da Sônia, era a mais requintada e mantinha a tradição de glamour e luxúria. Mas, contraditoriamente, foi ela também uma das razões do início de um processo decadente. Ali, aconteceu o maior crime do bairro, aquele que estigmatizou o Jardim Itatinga.















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