sábado, 7 de março de 2009

CAPÍTULO 3: A PROSTITUIÇÃO RUMO AO CONFINAMENTO

O cenário desses acontecimentos era próprio de um país que, em 1964, passava por grandes transformações. Naquele ano ocorreu o golpe militar, cujo regime se estendeu até 1984, quando foi deflagrada a campanha para as eleições diretas, que retomaria a democracia no Brasil. Um país inteiro vivia reprimido, tudo era censurado, principalmente aquilo que feria as ideologias militares. Compositores eram exilados por suas letras, consideradas agressivas ao governo, peças de teatro eram censuradas, e os jornais recebiam fiscais nas redações para que nada fosse publicado contra a vontade das autoridades políticas.

Foi em meio a esses acontecimentos que Campinas decidiu extinguir a prostituição, não apenas da área central, mas também, de qualquer local em que as mulheres pudessem cruzar os caminhos da sociedade. Foi em Campinas que aconteceu a formação de uma das maiores áreas de confinamento de prostituição, que ficou famosa nacionalmente. Por ação da sociedade e de políticos, todo um bairro foi configurado para isolar e abrigar as casas de prostituição.

O processo de confinamento não foi imediato, com a retirada das casas do centro e a transferência da prostituição para um bairro exclusivo, no caso, o Itatinga. Antes de ser definitivamente confinadas, em 1965, as prostitutas passaram por outros estágios: primeiro se instalaram na região da Lagoa do Taquaral, à época, pouco habitada.

A área onde se concentravam as prostitutas era próxima a um terreno doado aos padres salesianos para a construção de colégio e escola agrícola. A legislação a isentava de impostos. Algum tempo depois, a lei foi alterada e a Prefeitura decidiu isentar apenas as construções. Essa situação forçou os proprietários a dividir a área em lotes e vendê-los. Como o bairro não possuía infra-estrutura e era isolado, possuindo apenas algumas residências familiares, não oferecia condição para a construção de habitações regulares. Por essa razão, as terras foram desvalorizadas, facilitando a instalação das prostitutas.

No plano da classe política dominante, o bairro era ideal para se transformar em área nobre, dada sua localização, próxima ao centro da cidade, o que a privilegiava.Outro lado do problema era com relação à escassa vizinhança, que continuava a não aceitar as novas moradoras, em razão de seu comportamento. Muitas casas de prostituição acabavam comprometendo as famílias. As visitas ocorriam, geralmente, fora de hora, em meio a madrugada. Houve reações, iniciando, assim, um novo processo de exclusão, só que dessa vez para mais longe.

Enquanto estiveram no bairro Taquaral, algumas casas conquistaram fama, como não havia ocorrido na região central. As mais freqüentadas e consideradas de alto nível eram as da Maria Lúcia e da Paraguaia, mulheres que se iniciaram na prostituição e passaram a proprietárias. Essas cafetinas primavam pela qualidade de seus estabelecimentos. Suas casas ofereciam mulheres bonitas a preço elevado e ambiente requintado.

Onde quer que se instalassem, não faltavam mulheres, menos ainda clientes. Tanto sucesso não as poupou da fúria da sociedade, que não aceitava a idéia de ter como vizinhas mulheres de hábitos tão promíscuos que, aos olhos das famílias, desafiavam a moral e os preceitos religiosos.
É a partir desse momento que se trava a luta: sociedade versus promiscuidade. Reclamações de todo tipo chegavam às autoridades da cidade que, por sua vez, aparentavam ter interesses comerciais em retirar as prostitutas da região central e do Taquaral, pois algumas casas haviam permanecido no centro.

Às vésperas da mudança definitiva para o local que as receberia com o propósito exclusivo de abrigar a prostituição, o Jardim Itatinga, fizeram estágio em outro bairro, a meio caminho para o Itatinga. Esse local foi o Jardim Campos Elíseos. Bairro periférico, não tinha casas, apenas mato e algumas chácaras.

3.1 Operação Limpeza

O clima dos anos 60 levou vários segmentos de Campinas a se mobilizar no sentido do confinamento da prostituição. O movimento foi liderado pelo vereador Jamil Gadia, que também presidia a Câmara Municipal. Gadia pertencia à família tradicional e foi deputado estadual. "Ele, junto à polícia, acertou de fazer um bairro afastado para esses fins", afirma o vereador Romeu Santini que, na ocasião, iniciava sua vida política.

A ação da polícia foi decisiva. Foi responsável por levar, através de forte pressão, todas as prostitutas para a área que ficou nacionalmente conhecida como uma das maiores zonas de meretrício do país, o Jardim Itatinga. De acordo com o investigador de polícia, Antônio Lázaro Constanzo, o Lazinho, a zona de meretrício era a mais organizada do Brasil, quando a Delegacia de Jogos e Costumes atuava na cidade.

"A polícia não permitia a entrada de caminhoneiros, para não atrapalhar o trânsito. As mulheres não podiam aliciar clientes na rua e nem permaneciam em frente às casas. Os travestis não podiam se relacionar com os clientes e limitavam-se à função de faxineiros, com horários pré-estabelecidos de permanência no bairro", afirmou.

A polícia era também responsável por garantir o funcionamento da zona do meretrício, das 15h às 2h da madrugada e assegurar que nenhum homem dormiria lá. Os exames médicos eram exigidos pela mesma delegacia, cujo controle era feito, quinzenalmente, por meio de um fichamento.

Constavam nessas fichas informações como a identidade verdadeira das prostitutas, seus exames clínicos e ginecológicos, marcas pessoais como tatuagens e até contato com dentistas, que poderiam facilmente identificar vítimas de crimes.

Um acordo firmado entre a polícia e as donas de casas, garantia a sustentabilidade das prostitutas em casos de doenças venéreas detectadas em exames médicos, até a total recuperação. Lazinho afirma, ainda, que Leonardo Pedroso, Delegado titular da Academia de Policia, foi o grande responsável. "Foi um delegado inteligentíssimo que organizou o confinamento", elogiou.

Os interesses que moveram políticos eram respaldados na idéia de que a prostituição feria a ordem social, porém não deveria ser eliminada, apenas afastada. No entanto, interesses mais fortes moviam políticos, que também freqüentavam os bordéis.

O interesse real da classe política dominante à época era de valorizar a área do bairro Taquaral e de torná-la uma área nobre. Próximo ao centro e com um parque que, na atualidade, é ponto de referência para o lazer, a Prefeitura procurou dar início a um projeto de reurbanização, valorizando a área com a arborização do parque, a implantação de infraestrutura para novos loteamentos e venda de terrenos a preços elevados, oferecendo acesso apenas à classe rica da cidade. Dá-se início à ‘operação limpeza’.

Apesar desse forte motivo, houve ainda um segundo fator decisivo, segundo Santini, para afastar as prostitutas do centro: a sobrecarga de trabalho que elas acarretavam à polícia. As confusões causadas por famílias que se sentiam ofendidas com a presença das ‘intrusas’, somadas ao crescimento populacional da cidade, à existência de crimes que precisavam de uma ação urgente e à deficiência de pessoal na polícia, contribuíram para que houvesse o afastamento no espaço físico dessas mulheres. Com isso, ao menos, as confusões seriam evitadas.

O projeto, deflagrado na Administração Ruy Hellmesiter Novaes, não previa apenas a retirada das prostitutas do centro, mas também de todos os cortiços que existiam na região e que eram concentradores de famílias pobres trazidas pelo primeiro fluxo migratório que a cidade conheceu. Por isso, não apenas prostitutas, mas pessoas de baixa renda que habitavam esses aglomerados também foram retiradas. A operação limpeza foi retratada em reportagens dos jornais Correio Popular e Diário do Povo e saudada como um mecanismo de revitalização do centro.

Isso porque havia planos para uma reurbanização da área central. A operação limpeza teve por objetivo afastar todas as pessoas que, segundo a elite campineira, não faziam parte do contexto da classe média. O confinamento das prostitutas em Campinas, deu-se efetivamente em 1966, por força administrativa. Foi um processo inédito em todo país. Anteriormente, já havia ocorrido confinamento da prostituição em outras localidades, porém de forma natural, como o Mangue, no Rio de Janeiro, também um dos maiores prostíbulos da América Latina, assim como o bordel de Eny Cezarino, em Bauru, interior de São Paulo.
Esse estabelecimento ganhou fama devido à grande influência de sua dona, principalmente nos meios políticos. Todo esse poder rendeu sua imortalidade nas linhas da obra do jornalista Lucius de Mello, Eny e o Grande Bordel Brasileiro. No entanto, por pressão de autoridades, o confinamento em Campinas foi o primeiro e de que se tem notícia, o único.

Começou então uma batalha através da mídia, que dava sustentação à operação, denunciando casas e mulheres que saíam para o trottoir. Os jornais tiveram papel preponderante nessa batalha. Políticos apressavam-se em preparar o loteamento, o bairro Itatinga, bem distante do convívio social.

Não há documentos oficiais que comprovem a coerção. Porém, políticos e jornalistas, como Santini e Franco, que viveram a época, atestam que ela existiu de forma objetiva. O ex-prefeito de Campinas, Orestes Quércia, em cuja gestão foi asfaltado o Itatinga, procura isentar a classe política, em especial o ex-prefeito Ruy Novaes, como era chamado, de intervenção no processo. Para ele, a ação foi comandada pela Delegacia de Jogos e Costumes, pressionada pelas forças da sociedade.

Contudo, as reportagens de época mostram caminhões da Prefeitura atuando na mudança das famílias que eram retiradas dos cortiços, instalados em imensas casas e mansões deterioradas na região central, uma vez que no início dos anos 60, as famílias abastadas haviam construído em área nobre e recém loteada, o bairro Nova Campinas, a leste do Centro.

A pressão da sociedade foi efetiva e decisiva. Pessoas enviavam cartas a políticos e compareciam às delegacias de polícia para registrar queixas contra as prostitutas. Nos jornais e nas emissoras de rádio, como lembra Zaiman, repercutia o descontentamento da sociedade, o que levou editores e radialistas a emprestar apoio à ação que levou ao confinamento.

Assim que a área próxima ao Aeroporto de Viracopos ficou pronta, entraram em cena os policiais. Detentores de poderes para fazer cumprir a lei ou para punir quem a infringisse, não hesitaram em lançar mão dele para coagir prostitutas. Houve marcação cerrada, como lembra Santini: "ou elas iam ou não teriam mais paz". Eram ameaçadas e corriam risco de ser presas, caso continuassem a desfilar pelo centro da cidade. Não encontraram outra saída a não ser a porta da rua. As mulheres famosas e que tinham dinheiro apressaram-se em construir suas casas no Itatinga.

Apesar da grande torcida para o afastamento das prostitutas, nem todos foram a favor desse isolamento. O padre Milton Santana, personalidade histórica por suas lutas sociais e por ter sido molestado pelos militares do Golpe de 64, não apoiou o movimento e chegou a ser detido por essa razão. O padre, já falecido, era comunista e acreditava em direitos iguais para todos, como chegou a pregar à época.

Mas se o confinamento das prostitutas em Campinas não teve como base a lei, pois não é lícito excluir pessoas da própria sociedade, até porque prostituição não é crime - incorre em crime e pode ser punido quem explora o lenocínio -, tornou-se evidente que as ações foram baseadas em aparentes interesses próprios e econômicos.

Segundo Zaiman, "a sociedade não queria mais as mulheres ferindo a moral e os bons costumes, os políticos queriam valorizar os imóveis – casas e terrenos - das regiões onde a prostituição proliferara. Sobretudo o Taquaral, potencialmente uma área nobre e que, na década de 70, tornou-se uma das áreas mais valorizadas da cidade". A sociedade pressionou, a imprensa tomou partido e os policiais mostraram seu poder, executando o serviço", aponta Santini.















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