sábado, 7 de março de 2009

NOTAS DAS AUTORAS

Essa parte não remete aos capítulos do livro e as histórias que serão aqui contadas servem apenas para registrar as grandes aventuras e experiências que a elaboração desse trabalho nos proporcionou. Inicialmente, nosso objetivo era falar da história do bairro e esperamos ter conseguido nossa meta, mas há algo que descobrimos que merece uma atenção especial: as meninas, como são carinhosamente chamadas por nós.

A zona do meretrício, principalmente pela situação atual, não é o lugar ideal para três estudantes passarem algumas tardes e noites. Mas nós acreditávamos que para escrever, precisaríamos viver um pouco daquela realidade e nós o fizemos.

Embora a proposta do livro não fosse convidativa à algumas pessoas, seja pela preocupação ou por desacreditar em nosso sucesso nessa apuração jornalística, decidimos ir em frente. Mesmo que a desmotivação se revelasse em algumas conversas em busca de orientação, decidimos provar – para nós mesmas – que conseguiríamos.

Começamos nossas pesquisas no primeiro semestre desse ano e quando se fala em prostituição, dificilmente alguém quer colaborar ou enriquecer nossa história com o seu passado. Por mais que tivéssemos alegado discrição e preservação da imagem, muitos dos nossos possíveis entrevistados se negaram a falar por receio de terem seus nomes envolvidos em um assunto tão polêmico.

Foi o caso do Sr Ênio Bucke, que foi localizado pela nossa equipe em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Embora sua esposa, em inúmeras ligações, já nos tivesse informado que Ênio não falaria sobre o assunto, ele nos atendeu e se negou, disse que o sobrenome dele era diferente, que nunca esteve em Campinas, muito menos no Jardim Itatinga. Insistimos em vão.

A viagem marcada para o Rio de Janeiro para a entrevistarmos uma fonte tão importante foi desmarcada. Entretanto, todas as informações contidas nesse livro sobre o caso são baseadas no processo do crime que desarquivamos, portanto, verídicas e documentadas.

Há ainda histórias engraçadas como localizar o médico que cuidava das prostitutas. Ele atendeu o telefone e depois de nos identificarmos, ele se questionou "e daí?" e desligou o telefone sem que pudéssemos falar nada. Ligamos novamente e uma pessoa da família nos informou que ele não estaria em condições de nos responder. Estava com problemas de saúde.

E por falar em problemas de saúde, tentamos, desde o primeiro semestre, contatar o "bon vivant" que adorava dormir na zona e após muitos outros compromissos, não pôde mais nos atender. Ele tem um problema de saúde cíclico e estava passando por algumas dificuldades. Ligávamos para ele, que ao atender, dizia que ele não estava.

Nada foi documentado do bairro. Não há informações na Prefeitura, Biblioteca da Câmara Municipal, em livros ou nos arquivos do Largo do Café, cuja falta de organização não nos permitiu encontrar. Deficiente de embasamento teórico, fomos às entrevistas em busca de informações que pudessem nos ser úteis, além de novas sugestões de fontes.

Enfim, depois desse processo de pesquisa documental e bibliográfica, buscamos auxílio para a realização das pesquisas participante e de campo. Agendamos uma visita ao Centro de Promoção da Mulher Marginalizada, dirigido pelas freiras, Maria de Lourdes Vicari e Ana Maria Rocha Bastos. Este centro dá assistência às prostitutas do bairro e é também uma creche que se responsabiliza pelo atendimento aos filhos dessas mulheres e demais crianças da região.

Ao visitá-las, estávamos certas de que poderiam nos ajudar. Depois de explicarmos o objetivo do livro e pedir ajuda, elas ficaram nos questionando sobre o que ganhariam com tal trabalho. Para elas, nós estávamos sendo egoístas, pedindo ajuda e não dando nada em troca. Nós escreveríamos o livro, para conseguir nossos diplomas e elas nada ganhariam com isso.
Nosso objetivo nunca foi fazer alguém ganhar ou perder com este livro, só queríamos documentar a história do bairro que faz parte da história de Campinas e reunir o maior número de informações sobre o Jardim Itatinga.

Propusemo-nos a conseguir alimentos para a creche e elas prontamente responderam "Crianças todos ajudam, todos têm dó. E nós? O que vocês podem nos dar?". Depois de tentar negociar, ela nos pediu que visitássemos as meninas do Itatinga um dia por semana, de segunda à sexta-feira, durante o horário comercial. Era impossível, porque todas do grupo trabalham e dependem disso.

Ela sugeriu que déssemos seqüência e que garantíssemos muitas edições do Jornal Cinta Liga, um projeto iniciado pelo Professor Bruno Fuser, da Puc de Campinas. Não pudemos nos comprometer a fazê-lo porque, além de ter que arcar com os custos sem saber como, teríamos que fazer entrevistas e nos dedicar ao jornal e não tínhamos disponibilidade devido ao Projeto Experimental.

Jamais nos comprometeríamos a assinar matérias e a fazer um jornal que não teríamos condições ou ainda, não pretendemos, por nossa ética e postura pessoais, pagar pelas informações. Ignoramos os pedidos das representantes do CEPROMM e procuramos informações sobre a entidade através de documentos.

Para nossas pesquisas de campo procuramos outras formas de chegar ao bairro, de maneira a não causar desconforto para as moradoras. Começamos pelo Bar da Dalva, que nos abriu as portas de sua casa pela primeira vez no Itatinga. Conversou, contou, nos mostrou o lugar, disse como funcionava. Além de dona do bar, ela é cafetina e já foi prostituta em sua vida. Suas histórias enriqueceram nossas pesquisas e nos motivaram a voltar outras vezes.

Voltamos uma outra vez. Era uma tarde de sábado. Sentamos, as três, na mesa do Bar da Dalva e ficamos esperando por ela, que tinha ido ao centro. A curiosidade atraía os homens do bairro. Não éramos prostitutas, aparentemente. Olhavam-nos com ares de quem se pergunta "o que essas meninas estão fazendo num bar em pleno Itatinga".

Ficamos quietas e comportadas esperando, esperando, esperando e depois de ter visto uma movimentação sem igual naquele bar, carros passando insistentemente, homens e mulheres nos olhando e com receio de perguntar ou se aproximar, enfim, depois de quase duas horas esperando, resolvemos ir.

Mesmo porquê, o fundo musical não nos agradava muito. Característico do bairro, como cantoras do estilo pop no auge da mídia, ou o pagode, ou ainda músicas-tema de antigas novelas românticas. Quem não se lembra de " eu não quero tocar em você, oh baby, e fazer seu jogo vai me deixar louco"...

Então, você conhece a amiga da prima de não sei quem, que está sempre lá e que pode te levar a algumas casas. E ela levou uma de nós para conhecer a casa e passar uma tarde com as meninas, conversando, conhecendo e se divertindo. Porque elas são muito animadas e divertidas, têm um ótimo astral.

Paralelo a isso, a outra do grupo andava pelos hotéis do centro da cidade de Campinas, próximo à Estação Ferroviária, tentando entender o que aquelas mulheres estavam fazendo lá, ao invés de estarem no Itatinga e ouvindo duras realidades de quem não tem condição de vida e que vai ficando nessa vida por falta de opção.

Também durante esta pesquisa de campo, fomos ao Bosque de Campinas, no centro, onde se concentram prostitutas, travestis e garotos de programa. Conversamos com uns poucos, marcamos outros dias, outras entrevistas. Tentávamos, nas noites de inverno, andando, sozinhas por Campinas, conversar e nos aproximar das prostitutas.

Elas ficam em becos, em ruas escuras e a sorte que nos protegia até então, talvez não nos fosse tão generosa. Decidimos tentar outras vezes, durante o dia. Mas conhecemos de perto a realidade daquelas mulheres. Lugares sujos, situação incerta, convites de desconhecidos, promoção de sexo para atrair clientes como a conhecida ‘chupetinha por R$1,99’, referindo-se ao sexo oral.

E assim continuamos nosso trabalho. As idas ao Itatinga foram se tornando mais freqüentes. Agendamos uma visita às boates Galo de Ouro e Devaneios. A proposta era ficarmos até à meia-noite na primeira e até umas três e meia da madrugada na outra. Fomos bem recebidas, conhecemos a luxuosa Galo de Ouro, mas não tinha movimento em plena noite de sábado. Aqueles estacionamentos que saudosamente já estiveram lotados, não tinham nenhum carro.

Fomos então para a Devaneios, mais simples que a Galo de Ouro, mas com lindas e simpáticas meninas. Fomos bem recebidas e nossas entrevistas foram bem proveitosas. Combinamos de voltar, na terça-feira, quando o movimento deveria estar maior. Naquele dia, muitas das meninas estavam em Barretos, para a famosa e tradicional Festa de Rodeio.

Voltamos na terça e presenciamos uma triste situação. Um grupo de amigos chegou, escolheu as meninas e um deles, muito carente, nos comprovou o quanto homem precisa de carinho. Ele beijava as mãos e a abraçava e a acariciava e, em seu mais legítimo romance, a levou para o quarto. Pegou-a no colo, como nos filmes.

Ela estava passando mal e não pôde atendê-lo. As outras meninas da casa se uniram para ajudá-lo, para despertar o interesse dele por outra, mas ele estava preocupado e queria aquela menina, até que conseguiu. O acordo com o gerente da casa permitiu que entrassem no quarto, ela – que estava embriagada - ele e outra menina da casa.

Numa sexta-feira então, fomos passar uma noite no Itatinga, para viver aquela situação, para nos aproximarmos delas e entendermos melhor esse mundo que construíram para elas. Chegando numa outra casa, não tão famosa, nem luxuosa, sentamos ali naquelas cadeiras, como elas ficam, vendo o movimento e ‘à mostra nas vitrines’.

As abordagens e a insinuação das meninas eram as mais engraçadas. Frases como "vem me chupar ou demorou?" " a noite é uma criança, vamos fazer dela um bebê?", entre outras, tornaram as noites divertidas, mas é preciso atentar-se à tristeza que isso deve lhes causar.
Uma dessas meninas estava doente, já tinha ido ao hospital e estava com uma gripe muito forte e, mesmo com frio de agosto, ela estava de minissaia e top, de corpo à mostra. Aliás, isso todas elas. Podem até começar a noite com muita roupa, mas logo vão tirando e nas insinuações e danças vão ficando nuas.

É comum encontrarmos no Itatinga mulheres com seios à mostra, só de biquini, só de lingerie e salto alto... vale tudo nesta conquista aos clientes. Uma até nos disse "ai, está frio mas tem que fingir que não, né?"

Naquela calçada, ficamos sentadas como elas e quando chamadas ou abordadas, fazíamos que esperávamos por um cliente. Não podíamos dizer que era trabalho de faculdade ou que éramos jornalistas porque os clientes se afastariam e difamaríamos a casa. Não era esse o nosso objetivo e acabamos tolerando os inconvenientes homens dali.

O preconceito está mesmo nas pessoas. Todos nos perguntam "e se encontrarem vocês lá?" e nós respondíamos que as pessoas que são próximas e que deveriam saber, sabiam. Isso não nos envergonha. O olhar discriminante das pessoas quando nos viam sair da zona, ou dos hotéis do centro, ou dos bares poderia até nos incomodar, mas nossa preocupação maior era ver o que essa vivência nos proporcionaria.

Numa manhã de domingo, folga delas e quando imaginávamos que o bairro ainda dormia, fomos procurar por residências familiares para entender a convivência entre eles. Deparamo-nos com uma situação muito constrangedora. Perguntamos a uma mulher que varria uma casa onde encontraríamos por residências familiares. Indignada, ela nos respondeu que ali era uma residência familiar mas que se negava a falar. Bateu fortemente o portão e saiu.

Continuamos andando pelo bairro e recebemos um curioso convite de um homem que passeava pelo bairro de carro:
Estão perdidas? Vamos fazer amor?
Em nossa caminhada ainda presenciamos vestígios da boa noitada anterior. Um homem, embriagado, dormia tranqüilamente na calçada de um bar, com os membros expostos.
Deixamos as imagens fotográficas para serem registradas após o término da pesquisa de campo. Temíamos que durante o trabalho, isso pudesse nos privar de novos encontros no bairro.
Tentamos, durante a noite, fazer fotos escondidas. Não foram fotos elaboradas e os anseios causados pela situação de risco não resultaram em boas imagens. Ao ver os flashes das máquinas, elas se viravam, se escondiam e nós continuávamos tentando.

Numa outra oportunidade, voltamos com uma filmadora num carro com insulfilm para, com uma filmadora com infra-vermelho, transformar as imagens em fotografias. Muito produtivo e sem transtornos.

Após essas aventuras noturnas, voltamos ao bairro durante o dia, com nossas máquinas numa visita pré-agendada para fotografar as meninas. Fomos recebidas sem muito entusiasmo e uma pronta proibição da cafetina e das meninas, para que as fotos fossem produzidas.
Seguimos pelo bairro insistentemente em busca de uma profissional disposta a expor sua beleza às lentes das nossas máquinas. Algumas aceitaram, outras não. Algumas de corpos mais trabalhados e definidos, se negaram pois seriam facilmente reconhecidas e temiam. Outras ainda nos renderam boas fotos com sua já característica beleza natural.

Fomos então, fotografar as movimentadas ruas do bairro. Assustados, alguns freqüentadores em carros de empresa, tentavam se esconder e pediam que não os fotografássemos. Esse mesmo homem foi quem nos alertou de que outros estavam atrás de nós – não sabemos se era verdade, mas não esperamos para ver.

Não queremos deixar aqui uma mensagem para que sintam pena delas. Elas não são coitadas, nem querem mudar de vida. Uns podem achar que é por sem-vergonhice, mas acreditem: elas dão muito valor à relação familiar, à situação de vida que devem proporcionar aos seus filhos, à sua independência e a sua oportunidade de viver a cada dia.
Querem saber? Isso foi um exemplo de vida.


CONVERSAS NAS CALÇADAS


A cada conversa informal nas ruas do Itatinga, é possível conhecer as mais diferentes realidades e histórias das mulheres que hoje sustentam a fama do bairro. Confidenciaram-nos os seus casos mais intrigantes.

A mineirinha sorridente e descontraída, deixa a família e um filho que nem imaginam o que vem fazer a cada 15 dias em Campinas. Divorciada há pouco tempo, diz ter descoberto "uma mina entre as pernas" e que se soubesse antes, já estaria rica.

Outra, casada, diz ao marido que é enfermeira. Explica -se assim, os diferentes horários que trabalha. Seu marido? Nem desconfia. Ao ser convidada para uma foto, nega de imediato. Entre gargalhadas, diz que seu marido conhece aquela bunda em qualquer posição.

A amiga diz que também é casada e que seu maior cliente é o seu vizinho e todos no bairro já conhecem a fama do seu marido, menos ele. Ironicamente, diz que também não pode ser fotografada, pois seu pai é um leitor assíduo de jornais.

Outra, já se aproveita e diz que quer ser fotografada pois quer provar que as mulheres de lá não são ‘barangas’ como dizem por aí.

Numa certa noite, uma prostituta pensou que uniria o útil ao agradável. Viu entrar na casa um homem moreno, alto, bonito, de cavanhaque e aliança no dedo esquerdo, motivo de muita segurança na concepção delas. Ao chegar no quarto, se depara com aquele homem de lingerie, pedindo que ela o ‘console’.

Contaram ainda uma triste história. Para ajudar nas despesas da casa, o marido de uma delas a leva ao Itatinga em horário comercial e volta no fim do dia para buscá-la.

Ao falar do convívio no bairro e da criação dos filhos num cenário de prostituição e exposição do corpo, o morador nos disse que quando seu filho pergunta porque as mulheres de lá estão nuas, ele responde que é pelo calor. A pergunta foi feita em uma noite fria de inverno...

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